O Céu como Limite (da peça "Hitchcock")


"Hitchcock" estreia no Sábado (15 de Junho, 21h30, Centro Cívico de Palmeira). É encenada por mim. Esta é a terceira história.


O CÉU COMO LIMITE
(adaptado por Miguel Marado a partir do conto de Richard Hardwick)

(Artur está deitado do lado direito do palco, em posição fetal. Vai recuperando a consciência até que se levanta e olha para si mesmo, todo de branco, sem se aperceber do que se passa. Entra Carolina com o mesmo tipo de indumentária, do lado direito do palco, e diz:)

Carolina – Artur? Artur Pascal? És mesmo tu?

(Artur concentra-se e foca incrédulo o seu olhar na figura que se aproxima.)

Carolina – Caramba, és mesmo tu, Artur!

Artur (Confuso.) – Carolina…? Desculpa, mas… Tenho ideia de ter estado no teu funeral, há oito anos…

Carolina – Relaxa, Artur! Não tenhas pressa, aqui não há pressas. Como se costuma dizer, tem-se muito tempo para tudo quando se ‘tá morto…

Artur (Tocando as bochechas e olhando as mãos.) – Então eu… estou morto? Estou mesmo… morto?

Carolina – Bateste as botas. Estás tão morto como D. Afonso Henriques!

Artur – É bom voltar a ver-te, Carolina. Acho eu… Como… como tens passado?

Carolina (Sorrindo e encolhendo os ombros.) – Estou bem. Aqui estamos sempre bem. Para dizer a verdade, daria qualquer coisa para ver uma vesícula biliar.

Artur – Acredito, Sra.Dra., acredito.

Carolina (Com expressão séria.) – E agora que cá estás, temos um assunto pendente, se é que ainda te recordas. (Aponta para um tabuleiro de xadrez e sorri.) Tínhamos uma partidinha a meio, quando tive o ataque.

Artur – Não tenho de me registar, ou algo assim?

Carolina – Há muito tempo para essas formalidades. (Sentam-se à mesa.) É a tua vez.

Artur (Sorrindo.) – De acordo. É a minha vez.

(Vão conversando entre jogadas.)

Carolina – Que te aconteceu, Artur? Se não me engano, não tinhas mais de trinta anos quando morri.

Artur – É verdade. Tenho agora trinta e oito anos. (Pára e reflecte.) Na verdade, não faço a menor ideia do que me aconteceu, Carolina.

Carolina – Talvez tenhas tido um acidente, de viação por exemplo.

Artur – Não… Vejamos, tinha acabado de chegar a casa após um dia de trabalho e, não tardou muito, comecei a sentir-me mal. Comecei por vomitar, perdi os sentidos, sentia-me gravemente doente, entendes? Sim… lembro-me perfeitamente de sentir um medo terrível… Como se soubesse que estava a morrer…!

Carolina – Logo que entraste em casa sentiste-te assim?

Artur – Sim… Quer dizer… Não foi bem assim. Ainda tomei uma bebida. Mas era o que fazia todas as noites, logo que chegava a casa.

Carolina – Foste tu que preparaste a bebida?

Artur – Bem, na verdade… foi ela quem preparou a bebida. Uma espécie de tradição, um costume nosso. Eu regressava de mais um dia estafante e ela recebia-me com um beijo e uma bebida. (Concentra-se na jogada e diz, distraidamente:) Creio que os beijos esfriavam e as bebidas aqueciam… (Olha indignadamente para Carolina.) Mas que estás a querer dizer? Fala com franqueza!

Carolina – Creio que sabes do que se trata.

Artur – Achas que a bebida tinha alguma coisa, é isso? Isso é uma estupidez!

Carolina – Os sintomas não podem ser ignorados, Artur. Só te digo isto: gostava de poder dar uma olhada ao teu corpo e recolher algumas provas. Num caso como este, há sempre necessidade. Se aconteceu algo minimamente duvidoso, vai ser descoberto. Não se engana facilmente um médico legista. A propósito, como é que corriam as coisas entre ti e ela, nestes oito anos? Lembro-me que discutiam muito.

Artur – Foi difícil, não posso negá-lo. Há cerca de quinze anos atrás, comecei a subir na empresa. Neste momento, sou vice-presidente.

Carolina – Eras vice-presidente.

Artur – Sim. Seja como for, logo que comecei a ganhar dinheiro, ela começou a gastar mais e mais. Ganhava-o, mas não o disfrutava, porque quase não ganhava para as dívidas. Ela dizia que tínhamos de manter as aparências. (Tristemente.) Os momentos de prazer eram cada vez mais raros e breves… Ri, se quiseres, Carolina, mas há seis meses vi-me obrigado a contratar um detective. Recebi um telefonema anónimo a dizer que ela andava a trair-me e encarreguei o tipo de a seguir durante dois meses. (Continua a jogar e a brincar com as peças fora do tabuleiro.) Nada. Informou-me que apenas se deslocava ao consultório médico três a quatro vezes por semana, ao cabeleireiro, ao cinema, ao golfe… (Continua a jogar, enquanto Carolina o observa.) Estou a pensar… Claro… Só pode ser! É isso!

Carolina – O quê?

Artur – O Tavares! Lembraste do Carlos Tavares?

Carolina – Não é um ginecologista de 3ª?

Artur – Esse mesmo! E eu que acreditei que ela tivesse problemas femininos… Como fui ingénuo!

Carolina – Espera um pouco, Artur. Não tires conclusões precipitadas.

Artur – Eu? Mas foste tu que começaste a falar de sintomas. Estou a entender, mesmo até depois de mortos os médicos continuam a encobrir-se uns aos outros, não é verdade? (Fecha os olhos e concentra-se.) Estou a lembrar-me de algo, Carolina. Como se estivesse no fundo da minha memória. Estou a ficar com dores de cabeça, mas estou a lembrar-me… Estava lá alguém.

Carolina – Era ela?

Artur – E mais alguém. Ela estava a conversar com ele. Estavam de pé, à minha beira… ou debruçados sobre mim, para ser mais exacto. Ela disse, “Vai dar resultado?” e ouvi que ele respondia, às gargalhadas, “Deu resultado, querida, deu resultado!”. Era a voz do Tavares… Depois disso só me lembro de aqui estar e de me chamares.

(Ambos se mantêm em silêncio, evitando o contacto visual, até que Carolina diz:)

Carolina – Vão safar-se. O Tavares vai dar o seu parecer e dirá que foi ataque cardíaco. (Suspira.) Acho que é assim que tudo se vai passar.

Artur – O meu seguro valia a pena. Aposto que isso teve muito peso na decisão deles.

Carolina – Pois, segundo me lembro o Tavares tinha um fraco por corridas de cavalos e outros jogos a dinheiro.

(Continuam a jogar até que Carolina diz:)

Carolina – Xeque-mate. Parece que ganhei…

Artur (Esboçando um sorriso.) – Decididamente, hoje não estou nos meus melhores dias, em nenhum aspecto.

Carolina (Recolhendo as peças e preparando-se para voltar a jogar.) – Artur, talvez fosse mais sensato esperar que te acalmes, mas aquilo que te aconteceu é, agora, mais do que óbvio. Sendo assim, há algo que podes fazer, caso queiras.

Artur – Algo que posso fazer?

Carolina – Temos aqui uma espécie de tribunal. Claro que é necessário haver um preliminar, tens de testemunhar, mas um caso destes é quase uma formalidade. Vão acabar por te dar uma oportunidade de te vingares dela e do Tavares, se o pretenderes.

Artur – Queres dizer que posso fazer alguma coisa… contra eles?

Carolina – Exacto.

Artur – Posso fazer com que ela morra se quiser?

Carolina – Também podes fazer com que morra o Tavares, ou até mesmo os dois. Há limites como é evidente. Não se pode interferir muito no curso dos acontecimentos e não se pode recorrer a torturas ou coisa do género. Vais ver que entendes logo essas regras todas.

Artur – Sim! Sim! Mas posso fazer com que morram?

Carolina – Sem dúvida.

Artur (Sorri e esfrega as mãos.) – Maravilhoso! Por tudo o que me fez, vai direitinha para o Inferno. Maravilhoso… Há-de arder…

Carolina – Não digas mais nada. Amigo, não quero decepcionar-te, mas o Inferno não passa de um mito.

Artur (Desiludido.) – Não há Inferno?

Carolina – Não há Inferno. Se quiseres que se ocupem dela, ela vem cá parar. Bem, mas não és obrigado a vê-la ou ser incomodado por ela. Além disso, tudo isto é demasiado vasto e quase todos os humanos que habitaram a Terra desde os primórdios estão aqui.

Artur – Mas… Mas não me parece justo. Tenho de lhes fazer alguma coisa. Tenho de fazer! Eles estão lá em baixo, neste preciso momento, a rir-se e a regozijar-se, prestes a receber o dinheiro do seguro. Vão dançar em cima da minha campa. Alguma coisa lhes vou fazer…

(Eles levantam-se e desistem do segundo jogo, que não chegou a arrancar. Carolina põe um braço à volta de Artur.)

Carolina – Deixa tudo como está por agora, Artur. Tens tempo. Vou levar-te até ao Registo e depois vou mostrar-te tudo o que por aqui há para ver. Vai facilitar a tua orientação.

Artur – Mas…

Carolina – Vais acabar por encontrar a solução, Artur. Sempre foste um homem de recursos.

(Saem. As luzes apagam-se lentamente. Quando voltam a ligar lentamente, Artur e Carolina entram de lados opostos e cumprimentam-se com um sorriso. Sentam-se e começam a jogar, em silêncio.)

Artur (Passado algum tempo de jogo.) – Estou contente por não ter agido precipitadamente. Fiz bem em não a ter trazido, a ela e ao Tavares, para cá.

Carolina – Então? Tens tido notícias deles?

Artur – Segundo soube, a companhia de seguros pagou-lhes sem entraves ou demoras. Acabaram de se casar.

Carolina – Suponho que te custe, não?

Artur – Não estou preocupado, não tarda entrarão na rotina. Depois de cada dia passado no Hospital, o Tavares vai para casa e bebe uns copos. Talvez até se sentem a conversar junto à piscina, enquanto uns bifes grelham na brasa. Talvez façam uma ou outra das festas habituais.

Carolina – Mas… Sentes-te bem com isso?

Artur – Não consigo deixar de pensar que, com o tempo, ele ocupa o meu lugar… Mas isso não é forçosamente mau…

Carolina – Desculpa. Não percebo.

Artur – É muito fácil de explicar. Os meus antigos hábitos vão ser os dele. Vai tomar uma bebida, todos os dias ao chegar a casa. Sendo um homem sensato, não começará, após algum tempo, a olhar para o copo com certo receio? Além do mais, a lua-de-mel há-de tornar-se uma memória abafada por discussões, cada vez mais frequentes.

Carolina – Achas?

Artur – Conheço-a bem, conheço-lhe as discussões, as críticas, os desentendimentos. Aliás, ela mesma, sabendo que o Tavares tem conhecimentos profissionais e fácil acesso a todo o tipo de drogas usadas na medicina, vai começar a saborear os alimentos de forma diferente... Vai começar a dormir com um olho aberto, outro fechado, com medo duma picada de agulha.

Carolina – Achas que se vão matar um ao outro?

Artur – Acho que esses pensamentos e o pacto que fizeram sobre o meu cadáver, sobre a imagem da minha agonia, não vão deixá-los…

Carolina – Falas como quem já tomou uma decisão?

Artur – Sim. Já sei o que lhes desejo. Onde devo ir para fazer com que aconteça?

Carolina – Só depois da partida. Agora estás aí bem. Joga. (Após uma pausa.) Estou curiosa… Posso saber que decisão tomaste?

Artur – Como já te disse, casaram.

Carolina – Sim, já me tinhas dito. E então?

Artur – Sabes, só penso no regresso diário dele ao lar, nas bebidas que toma, nas ceias tranquilas a dois, e a suspeita a crescer entre eles, dia após dia, ano após ano, como um cancro.

Carolina – Sim?

Artur – Tenho uma pequena surpresa para eles! Vão viver até se tornarem o casal mais velho à face da Terra…

(Continuam a jogar. As luzes vão diminuindo até se desligarem.)


FIM

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