Ladrão de Jóias (da peça "Hitchcock")


"Hitchcock" estreia no Sábado (15 de Junho, 21h30, Centro Cívico de Palmeira). É encenada por mim. Esta é a última história.

LADRÃO DE JÓIAS
(adaptado por Miguel Marado a partir do conto de Philip Ketchum)

(Lennie surge do lado esquerdo com uma caixa na mão. Dirige-se ao público, humilde mas seguramente:)

Lennie – Olá…! Boas… Sou um ladrão de jóias e vou dar-vos uma pequena lição... Um curso intensivo, se preferirem. Sou um bom ladrão! Roubo os ricos. Não os demasiados ricos, mas ricos que facilmente substituem o que lhes “peço emprestado”. Trabalho sozinho, há doze anos, em várias cidades, sendo que fico três meses em cada visita. Faço três ou quatro “trabalhos” e vendo os despojos na cidade seguinte. É um trabalho normal, ganha-se é um bocado melhor que a média, cerca de 60 mil euros anuais, e não há cá rotinas… Sou cauteloso. Não ando com armas, não precisamos delas e o mais provável é nem as vermos. Também não bebo, a clareza é fundamental. Pois, e nada de mulheres, são piores que as armas e as bebidas juntas. Tenho um objectivo pessoal, que é o de amealhar um milhão de euros, para viver desafogadamente. Já consegui alguma parte, 300 mil, espalhados em vários bancos, não vá alguém estranhar. Mas deixemos de falar de mim, vou contar-vos como e porque aqui estou. Costumo disfarçar-me para dar os golpes, nada de meia na cabeça e fato-macaco preto. Desta vez fiz-me passar por funcionário da companhia dos telefones e procurei, neste prédio novo e selecto, uma casa onde ninguém atendesse. Então trabalhei a fechadura e em três minutitos abri-a. Nada de simples, explico-vos depois. Escolhi o dia de hoje porque é, normalmente, o dia de folga dos criados, e a hora, meio-dia, porque se não está ninguém agora, não vai estar ninguém até ao fim da tarde. Estão a apontar isto? Entrei no terceiro apartamento no qual toquei, ninguém atendeu. Está muito bem decorado e ornamentado. Dei uma vista de olhos pela casa, não fosse alguém estar num sono pesado… No quarto encontrei este guarda-jóias, que vou já abrir, para deitar mão ao que valer a pena. Mas o que vale mesmo a pena – normalmente, porque nada é muito científico nestas coisas – é o cofre. (Olha para o cofre.) Este, está no escritório. Já vou ensinar-vos como abri-los, o que costuma ser fácil, por muito incrível que pareça. Esperem só que abra o guarda-jóias… Já continuamos a… aula!

(Lennie está no centro do palco. Chega à secretária e despeja um guarda-jóias, de costas para o público. Pega nas jóias mais valiosas e enfia-as nos bolsos. A sua atenção passa então para o cofre. Agacha-se junto deste e levanta-o, para ver o seu peso, tentando avaliar o seu valor. Pega nele, põe-no em cima da mesa e começa a tentar abri-lo, encostando o ouvido ao cofre enquanto roda o botão de abertura do cofre. Entra Bernice empunhando uma arma e diz:)

Bernice – Experimente oito, nove, um, começando pela esquerda. (Lennie baixa as mãos e olha por cima do seu ombro.) Sou muito boa a manusear pistolas, se for preciso, mato-o. Tenho a certeza que a polícia não me considerava culpada, porque está, afinal de contas, em propriedade privada. Não me ouviu?

Lennie – Ouvi, sim.

Bernice – Dê a volta e vire-se para mim. Com muito cuidado, tire a sua pistola e deite-a para cima da secretária.

Lennie (Virando-se para Bernice e negando com a cabeça.) – Não tenho pistola.

Bernice – Mas… como é possível?

Lennie – Nunca ando armado.

Bernice – Mas de certeza que já roubou mais vezes? (Após pausa.) Perguntei-lhe se já roubou mais vezes!

Lennie – Só lho digo porque vai saber, mal a polícia me reviste. Sim.

Bernice – Como se chama? (Nova pausa.) Mais vale dizer-me. Vou descobrir. (Lennie procura uma solução para a sua situação, olhando em volta.) Como se chama?

Lennie – Hilário Lennie.

Bernice – Eu chamo-me Bernice Garcia. Vivo aqui, com o meu marido e a minha sogra. Quando ouvi mexer na porta pensei que fosse o meu marido. Não sabe meter a chave, principalmente se estiver bebido, isto é, quase sempre. Não gosto muito dele. Mas você não faça nenhuma estupidez. Se se aproximar, mato-o.

Lennie – Não se preocupe.

Bernice – Muito bem. Abra o cofre.

Lennie – Como?

Bernice – Abra o cofre. Já lhe disse a combinação. Comece pela esquerda, 8, 9, 1.

Lennie – Mas, porque…?

Bernice – Não queria dar uma olhadela? Continue!

Lennie – Mudei de ideias. Não vejo razão para continuar.

Bernice – Mas eu desejo que o faça. (Depois de nova pausa, diz, violentamente.) Lennie, abra o cofre! Aí dentro estão dez mil euros. Uma boa maquia, não acha?

Lennie – Não… Não sei.

Bernice – Estava à espera de mais?

Lennie – Eu… Porque não chama a polícia?

Bernice – Não quero a polícia. Se quisesse chamá-la já o tinha feito, mas isso significava que você estava já estendido por terra, morto. Não quero matá-lo, não é necessário.

Lennie – Quer dizer que vai deixar-me ir embora?

Bernice – Não propriamente. Não quer o dinheiro do cofre? É seu, se me fizer um favor.

Lennie – Que quer que eu faça?

Bernice (Sorrindo maliciosamente.) – Quero que me abra esse cofre e me dê algo que está lá dentro. É a sua profissão, não é? É muito simples, não lhe estou a pedir que faça uma coisa fora do vulgar!

Lennie – Não tem nada de simples… Que quer que lhe entregue?

Bernice – Só uns documentos que estão no cofre… Abra-o!

(Lennie tenta abrir o cofre, mas a combinação não está certa.)

Lennie – Não consigo abrir o cofre com esta combinação…

Bernice – Tem a certeza, não me está a mentir?

Lennie – Não, não estou.

Bernice – (Em surdina.) Pois, ela mudou-a… Consegue abri-lo, tenho a certeza.

Lennie – Penso que sim.

Bernice – Faça-o.

(Lennie demora um pouco, com o ouvido junto ao cofre e a pressão de Bernice, mas consegue abri-lo. Antes de o fazer, pergunta:)

Lennie – Que acontece depois de eu abrir o cofre?

Bernice – Nada, pode ir-se embora.

Lennie (Depois de algum tempo.) – Já está.

Bernice – Conseguiu, Lennie, conseguiu! Olhe lá para dentro, veja se encontra um envelope com o meu nome e entregue-mo.

Lennie – A quem pertence?

Bernice – Não vamos tropeçar em problemas, pois não? (Lennie entrega-lhe os documentos.) Bem, pertencem à minha sogra… (Depois de confirmar.) Era isto que eu procurava, Lennie. Significa muitíssimo para mim. Estou satisfeita por me ter aparecido esta manhã. Andava desesperada. Agora, ponha as jóias que roubou dentro do cofre e feche-o, não me parece bem que fique com elas.

Lennie – Disse que podia ficar com o dinheiro.

Bernice – E pode, logo que faça mais uma coisa por mim.

Lennie – Nem pensar. Fiz o que me pediu, quero ir-me embora.

Bernice (Com um sorriso amarelo.) – Só mais uma coisa por mim.

Lennie – Não.

Bernice – Só mais uma coisa, Lennie. É absolutamente imprescindível. Há que fazê-lo. Feche o cofre e sente-se. (Lennie hesita.) Sente-se, Lennie. Temos de esperar pela minha sogra, a Alice. Considero-a uma mulher muito desagradável. Não vai gostar dela, mas eu também não gosto.

Lennie – Não pretendo conhecê-la.

Bernice – Então, ainda melhor.

Lennie – O que quer dizer com…?

Bernice – Lennie, tenho-a na cabeça desde que o conheci. Primeiro tivemos que obter os documentos. Agora, suponhamos, se a Alice não existisse…

Lennie – Não… não posso fazê-lo.

Bernice – Acho que pode. Já veremos, acho que estou a ouvir alguém.

(Após segundos, Alice entra e olha para ambos, até que Bernice diz:)

Bernice – Olá, Alice. Temos estado à sua espera. Disse-me que voltava por volta da uma. Não se atrasou nem um segundo.

Alice – Quem é este?

Bernice – Digamos que… um ladrão de jóias. De facto, muito bom profissional.

Alice – Então? Abriu o meu cofre?

Bernice – Sim. Tenho aqui aquelas informações horríveis sobre mim. Devia tê-las lido ao seu filho há muito tempo. Agora temo que seja demasiado tarde.

Alice – Podem voltar a escrever-se!

Bernice – Não se estiver morta…

Alice – Então vai assassinar-me!?

Bernice – Eu não, Lennie é que o vai fazer. (Lennie nega com a cabeça.) Vá, Lennie. Não é muito alta nem muito forte. Se fosse a si deitava-a na cama e tapava-lhe a boca com uma almofada. Está a ouvir?

Lennie – Não… não posso fazê-lo.

Bernice – Tem de obedecer-me.

Lennie – É impossível.

Bernice – Sendo assim vou ter de matar os dois. Farei com que pareça que estava a roubar o apartamento. Azar, Lennie. É isso que quer? (Lennie hesita e olha para ambas.) Lennie, estou à espera.

Lennie – Tenho de fazê-lo?

Bernice – Tem, Lennie.

(Lennie aproxima-se de Bernice para chegar a Alice. Consegue agarrar Berenice pelo pescoço. Vai com ela até ao chão enquanto a mata.)

Alice – Está morta. Não posso dizer que o lamento, ela sempre quis que o meu filho morresse. (Apanha a arma de Bernice.)

Lennie (Perturbado, mas mais satisfeito.) – Não pude evitá-lo. Ela obrigou-me a ficar, ameaçou-me de morte. Tive de lhe obedecer.

Alice – Sim, eu sei. Você não tinha outra opção. Perdeu a sua oportunidade!

Lennie (Espantado.) – O que quer dizer com isso?

Alice – Vou ter de explicar à polícia. De uma forma ou outra, tenho de justificar o cadáver de Bernice. (Ergue a arma.) O mais fácil é isto.

Lennie – Espere, espere… Eu não…

Alice – Lamento, mas vai ter de ser assim.

(Quando Alice se prepara para disparar, Lennie salta para a arma e tenta tirar-lha. Lutam por ela. Alice revela-se surpreendentemente forte. Acabam por sair de cena, ainda envolvidos. Passados alguns segundos, ouvem-se dois disparos separados por uma pequena pausa.)


FIM

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