As Pistolas Carregadas são Perigosas (da peça "Hitchcock")


"Hitchcock" estreia a 15 de Junho, 21h30, Centro Cívico de Palmeira. É encenada por mim. Esta é a primeira história.

AS PISTOLAS CARREGADAS SÃO PERIGOSAS
(adaptado por Miguel Marado a partir do conto de Richard O. Lewis)

(Jorge encontra-se sentado numa cadeira à mesa da sala de estar. Lê o jornal.)

Jorge (Lê alto.) – Novo assassinato em casa de coleccionador. A capital voltou, ontem à noite, a ser palco de um assassinato motivado pelo roubo de moedas antigas. Desta vez as vítimas foram António Silva e a sua esposa Carla, mortos com um disparo à queima-roupa, após o roubo do cofre onde António guardava a sua valiosa colecção. A polícia suspeita de dois indivíduos que terão sido descritos pela vizinhança de algumas das vítimas, mas não dá pormenores à imprensa. No entanto, uma fonte fidedigna confirmou ser este homem parte da lista de coleccionadores que desvendaram a sua identificação, respondendo a um anúncio de jornal que propunha pechinchas em moedas antigas e aconselhou os coleccionadores a tomarem as devidas medidas de precaução… (Entra Marta.)

Marta – Quando entro na cozinha até o coração me sobe à garganta! Não sei porque tens ali, em cima do armário, aquela porcaria daquela pistola. Ainda aparecem visitas e aí é que vai ser…

Jorge – Marta, não te metas nisso, deixa-te estar lá com a tua jardinagem, que com isso preocupo-me eu! Vê se fazes um chá, que estou com uma bruta dor de cabeça e já são horas de tomar qualquer coisa.

(Sai Marta. A campainha toca e Jorge levanta-se para atender. Espreita pela porta envidraçada e vê os dois homens. Diz, em aparte:)

Jorge – Serão eles? Deixa-me pensar onde tenho as armas: uma no armário da cozinha, uma no quarto, outra no armário das moedas… Não me servem de nada… Já lhes vi as caras, se os ignorar ou tentar chegar às armas arrombam a porta e ‘tou morto! Ainda é cedo, acabou de escurecer, não devem ser eles. Vou abrir a porta e deixar-me de pânicos.

(Entra Marta.)

Marta (Espreitando pela porta.) – Que se passa, Jorge? Quem são estes senhores?

(Jorge abre a porta relutantemente e os homens entram sem hesitação.)

Jorge – Boa tarde…

Sr. Sierra – Boa tarde. Podemos usar o seu telefone?

Marta – Claro, estejam à vontade. Jorge, não fiques aí parado. O que é que se passa? Deixa os senhores entrar!

(O casal entra com uma mala preta e ambos investigam, percorrendo a divisão com o olhar, procurando vislumbrar a casa.)

Marta – Sentem-se, ponham aqui as coisas, estejam à vontade! Vá lá, sentem-se, olhem que eu não mordo! Vou aqui à cozinha fazer um chá de cidreira e acho que sou capaz de ter umas bolachinhas, que são uma maravilha…

Sr. Sierra – Não queremos chá.

Marta – Não querem chá? Vou então buscar um café e as bolachinhas, Sr. … Que tonta, valha-me Deus, veja lá que já me esqueci dos nomes dos senhores!

Sr. Sierra – Esta é a Sra. Pereira, eu sou o Sr. Sierra.

Marta – Sierra, é um nome invulgar, raro, não é? Tenho na família quem tenha esse nome. Acho que é o Carlos, lembras-te Jorge, que casou com a minha prima Ana. Se calhar ainda são aparentados, que engraçado…

Sra. Pereira (Para Jorge.) – Ouvi dizer que tem uma grande colecção de moedas.

Jorge (Muito nervoso, perante a confirmação que eram estes os assassinos.) – Pois, já…

Marta – Sim, sim, o Jorge tem lá em cima um armário cheiinho de moedas. Não sei que diabo vai fazer com elas. Continua a coleccioná-las, a pô-las em capas, boiões e coisas que tal. Passa horas inteiras a fio de volta delas. Queria eu que as guardasse no banco ou num lugar seguro, mas ele insiste em tê-las aqui, que um hobbie deixa de o ser se as coisas não estiverem à mão! (Olhando rispidamente para o marido.) Pessoalmente acho um grande disparate! (Tapa a boca com mão.) Desculpem-me! Talvez não devesse falar tanto, não vá acontecer que também os senhores sejam coleccionadores, não é?

Sr. Sierra – Sim, poderiam chamar-nos coleccionadores.

Sra. Pereira – Também coleccionamos armas de fogo. (Retira uma arma do bolso. Jorge fica com uma estranha expressão de quem está prestes a vomitar.)

Marta – Ai, valha-me Deus! Detesto pistolas, fazem-me medo! Isso é que eu tenho pena que o Jorge coleccione, mas é o que faz com tudo! Vejam lá que as deixa espalhadas pela casa, uma na cozinha, outra no quarto e a terceira no armário das moedas. Já lhe disse que devia guardá-las ou vendê-las mais de mil vezes.

(Jorge reage a isto incredulamente, pois deixa de ter qualquer hipótese que seja de fazer uso das armas.)

Jorge – Não incomodes os senhores com isso, Marta.

Marta – Tens razão, desculpem-me. Só espero que não tenham munições. (Afasta-se de Sra. Pereira, receosa.) As pistolas carregadas são perigosas, aterrorizam-me. Estou sempre a dizer ao Jorge que não deve deixar as pistolas de qualquer maneira, assim, espalhadas pela casa. Já pensaram no que acontecia se entrassem aqui crianças e brincassem com uma? Podiam matar-se! Mas não há problema, não se assustem, tirei as munições a todas. Estou sempre a dizer que mais vale prevenir que remediar!

Sr. Sierra (Troçando.) – Muito inteligente, minha senhora, muito inteligente.

Sra. Pereira – Sim, uma prudência oportuna, sem dúvida.

Sr. Sierra – E agora, acho que seria melhor dar uma vistinha de olhos à sua colecção… quero dizer colecção de moedas, claro! (Pega na sua pistola e na pasta e indica a Jorge a saída de cena. Jorge hesita, mas acaba por obedecer.)

Marta – Claro que eu nunca conseguiria mexer nas armas, que horror! Foi da última vez que o meu irmão, o Alberto, cá esteve, que lhe disse que as descarregasse, sem que o meu marido soubesse, é claro! (Jorge volta a hesitar, pensativo, mas continua, sob a ameaça de Sr. Sierra.) Julgo que sobrou um bocadinho de tarte. Vou trazer-vos uma fatia com um copo de leite frio para que possam comer e beber enquanto vêem a colecção. (Levanta-se e é seguida por Sra. Pereira, que não a deixa sair para a cozinha.)

Sra. Pereira – Não se incomode. Fique aqui e calada!

Marta – Gosto de ter sempre um bolo ou umas bolachas em casa para o caso de aparecer alguma visita. Mas não aparece muita gente, estamos muito isolados. Nem sei o que estaria agora a fazer se não tivessem vindo. Deitamo-nos muito cedo…

(Sra. Pereira tenta concentrar-se no som de moedas a cair que vem do quarto do armário das moedas.)

Marta – Talvez o Sr. Sierra esteja a comprar a colecção ao meu marido. Espero que sim. O Jorge tem aquele hobbie vai para vinte anos, deve ter milhares de moedas de todo o tipo. Passa tanto tempo com elas, a ordená-las, a classificá-las… há dias em que mal falamos.

(Soam dois disparos. Marta e Sra. Pereira ficam paradas, atentas. Sra. Pereira tira uma arma do bolso conforme se ouvem sons da outra divisão, segurando Marta.)

Sra. Pereira – Vamos ter calma. Vamos esperar que ele apareça.

(Jorge aparece, cambaleante, com dedos e indumentária sujos do que parece ser o seu próprio sangue. Avança até à mesa onde se apoia, como se às portas da morte. Marta vai ter com ele e tenta ajudá-lo. Sra. Pereira fica apreensiva e ergue a pistola na direcção deles, até que, após alguns momentos, descontrai, baixa a arma e sorri.)

Sra. Pereira – Parece-me que está lixado, meu amigo…

(Jorge, apoiado por Marta do seu lado esquerdo, verga-se sobre a mesa, Marta chora baixinho. Subitamente, Jorge ergue com ar decidido a mão direita com a qual dispara sobre Sra. Pereira. Esta olha incredulamente para ambos e para as suas mãos que lhe parecem repletas do sangue que sai dum pequeno orifício no seu peito, antes de cair no chão. Jorge e Marta observam tudo apreensivamente. Jorge abraça Marta, que tenta afastá-lo.)

Marta – Jorge, estás ferido, querido... Estás coberto de sangue!

Jorge – Não é meu, é do que me acompanhou, tive de me sujar para ficar com um aspecto mais convincente. (Abraça-a com força e beija-a.) Acreditaram, na história das pistolas descarregadas. O Sierra não teve cuidado e deu-me uma oportunidade de ouro.

Marta – Quando me apercebi de quem eram, calculei que te andassem a vigiar e observassem todos os teus movimentos. Decidi fazer qualquer coisa.

(Jorge larga-a e pega num telemóvel, pára e volta a olhá-la.)

Jorge – Sabes uma coisa? Também acreditei em ti até que te ouvi falar “no teu irmão Alberto”. Tu não tens irmãos...

Marta – Não sabia o que fazer, estava à espera que me percebesses.

Jorge (Enquanto marca um número no telefone.) – Muito inteligente, minha senhora, muito inteligente!

Marta – Sim, muito inteligente!

FIM

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