Bússola

          Filipe olhava a professora e o relógio alternadamente, nos minutos finais de uma das últimas aulas de História do seu 7º ano. Era um bom aluno, e os laivos de ânsias que lhe faziam estremecer os músculos das pernas não tinham como raiz a matéria da aula. Tinham, sim, a sua origem na repetida explicação do Neolitismo que fora requisitada por uma das suas colegas mais dedicadas naquela aula de revisões finais.

          Duas pancadas secas na porta fizeram a professora imitar o aluno, olhando para o relógio. Temia que, entusiasmada na elucidação, pudesse ter feito ouvidos moucos à campainha que demarcava a aula. Mandou imediatamente entrar.

          - Desculpa, Sofia. – disse o Director da escola, enquanto virava os olhos para Filipe. Depois disse, com um sorriso triste: - Filipe Carvalho?

          Filipe acenou, desconfiado.

          - Importas-te de vir comigo, por favor?

          - Não, Senhor Director…

          Filipe apenas uma vez tinha sido tirado de uma aula. No ano anterior, um colega seu costumava levar peças de ouro para a escola. Mostrava-as aos colegas e dizia que as queria vender. Supostamente seriam da sua mãe e avó, e estas já não as quereriam. Filipe achara tudo aquilo muito estranho, mas inicialmente ignorou-o. Com o passar dos dias, das semanas, as peças que o colega levava continuavam a surgir a bom ritmo. Filipe apercebeu-se, então, que Marco, o seu colega, continuava efectivamente a vender e a trazer novos produtos de ouro e pedras preciosas, quase todos os dias. Um dia, Filipe resolveu perguntar ao colega quanto custava um colar muito bonito, simples, com um pendente de base em ouro e uma única pérola. Marco vendeu-lho por dez euros. Tinham passado poucos dias desde o aniversário de Filipe e a sua mãe, apesar de ter guardado a grande maioria dos presentes em numerário, tinha-lhe permitido gastar precisamente dez euros.

          O nosso rapaz guardou o colar na sua mochila, com todo o cuidado. Ao sair da escola, a sua mãe notou como estava compenetrado. Algo estava diferente, mas ele não seria quem lho esclareceria. Ao chegarem a casa, ele dirigiu-se de imediato ao quarto, duma forma maquinal: os pés sucediam-se simétrica e calculadamente, como se contivesse algum fulgor indizível. Mostrava a intenção corriqueira de pousar a mochila no seu lugar, mas encostou criteriosamente a porta ao fazê-lo.

          Foi de mãos atrás das costas que se aproximou de novo da mãe, sorridente:

          - Queres que vá buscar pão?

          A sua mãe sorriu de volta, ao testemunhar aquela encenação. Confiava nele e cria que nada de verdadeiramente errado se passava. Abriu a carteira e depositou-lhe alguns trocos na mão, enquanto lhe dizia quanto pão precisava.

          Filipe dissimulou o colar enquanto virava costas e, agora incontidamente, apressou-se a sair de casa. A padaria é numa esquina ao fundo da rua onde o seu apartamento se localiza. Do outro lado da rua há uma ourivesaria. Ele entrou nesse estabelecimento.

          Chegado ao balcão, Filipe pousou de imediato o colar e pairou impacientemente os olhos sobre o que o rodeava, sem realmente ver toda a riqueza desinteressante que se mutava em diversas formas, como outros colares, pulseiras, anéis, relógios e outra quinquilharia cuja identidade desconhecia. O Sr. Alfredo, proprietário da ourivesaria, olhava-o curioso:

          - Meu rapaz, o que me queres?

          - Olá, boa tarde. Gostava de saber se este colar, que encontrei ao regressar da escola, tem algum valor? Como estava caído no chão, aposto que não vale nada. Mas se for verdadeiro, vou entregá-lo à polícia para que possam encontrar a senhora que o perdeu, que deve estar aflita! – Como aos 11 anos este menino a sabia toda!

          O Sr. Alfredo, mais descansado pelo facto do jovem lhe não ter querido vender aquele produto de origem incerta, pegou no colar e analisou-o brevemente.

          - Devias entregá-lo à polícia, sim, que o ouro e a pérola são verdadeiros. Não são muito valiosos, mas podem ter valor sentimental.

          - Ainda bem que só dei dez euros por ele! – Disse Filipe num desabafo suficientemente alto para deixar em rebuliço o Alfredo ourives enquanto ele saltitava pela rua, agradecia ao senhor, e quase se esquecia do motivo da viagem: a meia dúzia de pães que a mãe lhe pedira!

          Chegado a casa, Filipe dirigiu-se da seguinte forma à sua mãe:

          - Mamã, não me ralhes, mas eu acho que comprei uma coisa roubada…

          Depois de olhar para a saca de pão (o invólucro era, se formos correctos, de papel; no entanto, era fácil confirmar que conteria produtos panifícios), a sua mãe disse-lhe:

          - Compraste pão roubado?

          - Estou a ver que é melhor começar do início…

          Filipe narrou a situação de Marco e como tudo aquilo o intrigara. Explicou à progenitora como não conseguia continuar a ver acontecer aquelas trocas sem entender como seria possível: seriam aqueles produtos falsos?; seriam roubados?; se roubados, seriam roubados à mãe ou à avó, ou a alguma ourivesaria ou outra pessoa?; estaria Marco a definir os preços e a colher os lucros, ou estaria a agir pela vez de alguém?

          Todas as questões enumeradas tinham-no levado a agir, e agora sabia que o colar era verdadeiro, e temia que Marco estivesse em apuros.

          A sua mãe, sem saber como reagir, - ao ver-se inundada de orgulho, espanto, preocupação e toda uma nova ordem de questões quer paralelas, como completamente divergentes às do seu filho -, perguntou ao filho o que achava que devia fazer em seguida. Filipe nem ponderou:

          - Acho que devia dizer à nossa Directora de Turma para que a Professora possa falar com os Encarregados de Educação.

          - Quando tens aula com a tua Directora de Turma?

          - Amanhã.

          - Muito bem. Então levas-lhe o colar, e explicas-lhe tudo como me explicaste a mim. Mas, Filipe… Não o faças em frente aos teus colegas, muito menos à frente do Marco, e não mostres isso a ninguém. Pede à tua Professora que não divulgue o teu nome, filho.

          Filipe assim fez. Dois dias depois da troca e da visita à ourivesaria, chegou o dia da Polícia visitar a escola e pedir a Marco que explicasse tudo. Segundo se veio depois a saber, o pai de Marco estava preso há poucos dias, depois de ter sido julgado pela burla a uma senhora de idade numa aldeia próxima. Da mesma forma que muitos idosos conservam em casa o que para si são verdadeiras fortunas, que preferem não depositar no banco, essa senhora acumulara a sua riqueza através de diversas jóias. Adquirira-as maioritariamente a familiares, pois coleccionava essas peças que estivessem já na família, sobretudo imediatamente após estas terem sido passadas em herança. Os agentes policiais tinham tentado que o pai de Marco confessasse o roubo e dissesse onde estavam as jóias, mas este tinha negado tudo, e foi através de outras evidências que conseguiram condená-lo. Agora tinham a oportunidade de as recuperar.

          Marco, aparentemente, era o único que conhecia o paradeiro das peças de valor. Como ele se negasse a confessar o seu paradeiro, a Professora deles identificou Filipe como o informador que lhe tinha dado o colar que ela tinha agora em sua posse. Foi aí que, para levar a bom porto a recuperação do espólio, a Polícia resolveu envolver Filipe na conversa com Marco, que foi assim obrigado a falar. Foi então que, pela primeira vez, um funcionário removeu Filipe duma aula. O seu pai ficou muito orgulhoso, mas várias pessoas levariam anos até compreender e aceitar como positiva a atitude de Filipe.

          Recordado desta situação, Filipe perguntou ao Director, conforme este caminhava apressado e distante ao seu lado pelo corredor do primeiro piso daquele edifício da escola:

          - Temos de falar por causa do pai do Marco?

          Olhando de soslaio, triste e pesadamente, o Senhor Director apenas respondeu:

          - Antes fosse por causa dele. Antes fosse…

          Caminharam silenciosamente o resto do caminho.



***



          O resto do dia voou, mas em câmara lenta. Passou tudo de forma rápida, sem se mexer. O ritmo da vida mudou ao entrar no gabinete da Direcção da escola, e ao ver a sua mãe sentada, encolhida, com as mãos e as faces unidas e igualmente lavadas em lágrimas e desilusão. Ao vê-lo, agarrou-se a ele, que só perguntava o que tinha acontecido.

          A sua mãe então disse-lhe:

          - O papá morreu, o teu papá morreu!

          Foi a partir de então, que nesse dia, o tempo planou: voava, parado. Filipe não chorou, porque não tinha visto o seu pai morrer, não o vira morto, e nem sequer sabia como morrera.

          A sua mãe disse-lhe, por fim, olhando-o nos olhos:

          - O pai nunca te vai deixar. Não te sintas só, que o papá vai-te acompanhar sempre! – E chorou de novo, agarrada ao filho.

          A mãe teve de ir tratar duns assuntos, e deixou-o à espera da sua tia, que o apanharia e levaria para sua casa em breve. Os Professores que entravam e saíam do gabinete, e os que lá se demoravam, cochichavam entre si sobre ele, mas apenas o olhavam complacentemente em resultado da informação obtida, não lhe falavam.

          A tia chegou e levou-o. Não se lembra já do que almoçou, pouco falou, nada ouviu. Talvez a meio da tarde, certamente durante a tarde, a mãe recolheu-o na casa da sua irmã, e levou-o até casa da sua avó, onde jantou. Alguns abraços e palmadas nas costas se juntaram a mensagens difusas, que se perderam na maré de questões que não ousava verbalizar. As diversas televisões que mirou nesse dia mexiam as imagens para o levar a planar com o tempo. Foi quando o avô chegou a casa que ele soube mais.

          O avô não tinha medo de crianças que sofrem caladas, com olhos pespegados em ecrãs. Ele tinha estado na guerra. O avô sentou-o longe da televisão, e tirou-o do sofá. A rudeza das cadeiras no seu escritório contrastavam com todos os assentos moles onde o tinham adorado como a um santinho até então, nesse dia voador. O tempo pausou, e fez-se paciente, como quem sabe que planar tem um fim, mas não quer deitar-se e renascer.

          A papelada que o avô arrumava ruidosamente em gavetas velhas também exercia um contraste: o seu pai não usava papel, só o computador, e era pequeno. No escritório do avô não parecia haver plásticos. Madeira, em formato de móveis ou em folhas de papel, e algum vidro, a cerrar janelas ou a prender imagens que não querem fugir, com pessoas diferentes antes do tempo ter passado, incluindo uma viva que agora estava morta.

          - Como estás? – Perguntou-lhe o avô, sem rodeios.

          - Estou bem.

          - Sabes o que se passou?

          - Sei. O meu pai morreu…

          - Tens alguma pergunta?

          - Sim. O meu pai estava doente?

          - Não, meu filho. Queres saber o que aconteceu ao teu pai?

          - Sim… Ele deixou-me hoje na escola, e estava tudo bem.

          - Estava, sim. Mas depois aconteceu um acidente, e o teu pai teve azar, não sobreviveu. Ainda não se sabe muito bem como, mas o carro do teu pai despistou-se e foi embater num camião. – Depois de olhar o neto, que se focara num qualquer pormenor do tapete que tinha em frente, continuou. – Estou certo que o teu pai não queria que vocês ficassem tristes, tu e a tua mãe. Ele queria que tudo corresse bem, e que este fosse só outro dia normal, para ao fim da tarde voltar para vocês. – Em nova pausa, sentou-se defronte do menino. – Filipe, o funeral do teu pai é amanhã. Gostavas de ir vê-lo uma última vez, ou preferes estar noutro sítio?

          - Não quero ir.

          - Fazes muito bem, então não vais.

          Filipe começou, então, a chorar. Um leve e contínuo som emergia dele, enquanto as lágrimas grossas e quentes lhe corriam a face e se depositavam no colarinho da camisa, quando não lhe caíam sobre as mãos, que se agarravam sobre o seu colo. O avô olhava para o miúdo pequeno e não conseguia lembrar-se de ter a sua idade, de ser daquele tamanho e pensar com aquela visão do mundo. Lembrava-se, ainda assim, da morte do seu pai, já era ele de idade muito mais avançada. E sabia que a dor nunca o ia deixar, que ela o ia acompanhar sempre.



***



          A mãe de Filipe tem um nome. Chama-se Andreia. Andreia fora, desde que Filipe se lembrava, bastante ocupada. Fora de casa, ou no seu seio, não era muito comum que tivesse tempo para descansar, e sentava-se pouco mais do que à mesa, para comer. Trabalhava numa empresa de produção têxtil, nos escritórios. Tinha responsabilidades de secretaria, mas também de expedição de stocks ou encomenda de matérias-primas. A impossibilidade de contratar auxiliares no clima económico debilitado em que se encontravam obrigavam-na a realizar o trabalho de, no mínimo, duas pessoas. A pressão psicológica constante era algo a que se habituara, e a perda do marido só a tornara mais focada, mais rígida com o seu trabalho.

          Chegando a casa, era inevitável que o cansaço se fizesse notar em algum sentido. Por muitas vezes se refugiava na facilidade que o filho lhe dava, por querer evitar importunar a mãe, de poder adiar longas conversas com ele, de poder deitar-se um pouco mais cedo para o merecido descanso.

          Durante o dia corria, fazia telefonemas, enviava e-mails, comia de pé num canto do escritório, enquanto organizava as ideias para a tarde que se sucederia, ligava para outros pisos do edifício, a coordenar entregas, atendia pedidos e agendava reuniões, sofrendo ainda por vezes com as críticas mal direccionadas do seu patrão, perto do qual se habituara a trabalhar.

          Durante a noite cozinhava com vagar, distraía-se na cozinha e deixava o lume ligado tempo demais, ou esquecia um ou outro ingrediente. Programava a máquina da loiça ou da roupa, que se esquecia de ligar. Punha a correr um banho que se esquecia de tomar. Ligava a televisão para ver a telenovela que jamais via, por adormecer sempre. Filipe era o fantasma duma vida a três, mais leve por influência do marido, e habituara a não se fazer notar ou a não recolher validação pelas tarefas que completava à mãe ou pelas críticas que calava. A sua mãe, Andreia, era o fantasma que lhe restava, dum par de pais atenciosos e amorosos que complementara em tempos. A criança sentia-se, entre a chegada da mãe e o seu colapso no sofá ou na cama, como o centro duma rotunda, que há que contornar mas que raramente é alvo de atenção. Era mais um vazio, um buraco-negro, do que uma presença. A sua mãe circulava em volta de si, não o tinha como inexistente, mas não lhe prestava atenção.

          Não pensemos por um instante, por tentados que estejamos, que o Filipe saía um segundo que fosse do pensamento e das considerações da sua mãe. Tratamos aqui de prioridades. Andreia esforçava-se para que o negócio no qual estava empregue não ruísse, para poder continuar a dar ao filho tudo o que este necessitava. A Filipe nunca lhe faltava comida, saúde e quem de qualificado olhasse por ele, ou atenção pelo seu percurso e sucesso escolar. Andreia, a gestora do escritório, era Andreia, a gestora da vida doméstica e escolar do seu filho.

          Andreia não era a gestora das suas emoções, engarrafadas e guardadas em poucos dias, quase por debaixo da última pá de terra que cobrira o sepulcro fúnebre do seu marido. Andreia não era a gestora da vida emocional do seu filho, que jamais chorara à sua frente, e que não falava sobre o seu pai.

          Existia entre eles, filho e mãe, um acordo tácito e mudo: o dia seguinte seria o dia para falar, para se abrirem, para remexerem no baú do muito que tinham passado e guardado. Hoje seria um dia normal, apenas um dia sem o pai e o marido, mas um dia normal. Só nunca se definira qual seria o dia seguinte, e continuavam mês após mês a viver o dia de hoje.

          Entre mãe e filho, as divergências começavam precisamente na percepção da passagem do tempo. Se para Filipe o dia da morte do seu pai pairara, planara veloz e imperceptivelmente, os meses que o sucederam arrastaram-se penosamente. Já para Andreia, foi o dia mais longo da sua vida, aquele no qual o amor duma existência a abandonou. Os meses seguintes, esses voaram sob o impulso do trabalho e da necessidade de dar o melhor de si para conseguir manter o nível de vida do seu Filipe.

          Os colegas do jovem careciam das ferramentas humanas necessárias para melhor lidar com ele. A sua natureza inquisitiva de há um ano atrás granjeara-lhe inimizades, não apenas fruto do episódio com Marco propriamente dito, mas por se fazer notar. Agora, os colegas sabiam que a sua atitude de distraído mascarava um olhar atento, que a sua capacidade de observação não se limitava às aulas, mas poderia virar-se contra eles. A morte do seu pai, infelizmente, não resultou numa maior empatia duradoura. Depois dos olhares silenciosos e das atitudes desconfortáveis já evidenciadas pelos adultos, rapidamente retornaram ao tratamento que lhe davam comummente.

          Os seus fins-de-semana eram passados às compras com a mãe, a aguardar na casa dum familiar enquanto esta tratava de alguns afazeres ou saía com amigas, e em frente da televisão quando a mãe se dava ao luxo de, nas manhãs de Domingo, se deixar dormir mais um pouco.

          O pior dia desde o falecimento do seu pai deu-se quando se cumpriu um ano sobre a morte dele. Acordou completamente absorvido pela tristeza do dia, não foi capaz de esquecer-se dele nem nos primeiros segundos da manhã, enquanto os olhos ainda não se adaptavam à ténue luz do candeeiro. A mãe cumpriu a rotina: acordou-o e mandou-o para o banho de toalha e roupa interior lavadas na mão. Quando saiu do banho, vestiu-se e sentou-se à mesa. Numa azáfama já banal, a mãe colocou-lhe uma malga, um cesto com pão, os cereais e um pacote de leite defronte dos olhos, e de seguida pousou-lhe a manteiga e a respectiva faca ao lado da cesta de pão. Ele pegou num copo para beber leite e comeu um pão com manteiga. Não lhe apetecia sujeitar-se ao penoso processo de levar uma colher à boca sucessivas vezes, correndo o risco de se deixar levar pelas lágrimas caso alguma gota de leite lhe escorresse pelo queixo e lhe lembrasse o quão bom é poder sentir e ser por fora o que se traz por dentro.

          Pouco depois, a mãe conduziu-o à escola, onde tudo piorou. A professora de inglês fez questão de descarregar as frustrações sobre ele, por ele se ter distraído e, quando finalmente respondeu à sua questão, tê-lo feito em português. Marco fez questão de repetir que tinha sido um amigo do seu pai quem tinha cortado os travões do carro do pai de Filipe, quando este tinha morrido. Conforme este o ignorasse, procedeu a esmurrá-lo nos braços:

          - Não tens pai, mas não te preocupes que eu dou-te educação!

          Filipe, completamente farto deste tratamento e cego de raiva pelas menções ao pai, que desrespeitavam a sua memória e o direito dele e de Filipe à paz, atacou selvática e descontroladamente Marco. Tal ataque resultou meramente numa resposta esmagadora, concedendo a Marco a desculpa de que precisava para se sobrepor fisicamente ao mais pequeno e menos agressivo Filipe.

          Ficaram ambos bastante mal tratados, apesar de Filipe ter ficado pior. Além da violência da parte de Marco sofrera pontapés dos amigos dele, miúdos dos mesmos meios socialmente depauperados que este. Foram apresentados ao Director da escola, que responsabilizou Filipe pelo desacato, confiando em relatos que teria sido este o primeiro a agir. Avisou-o de imediato que ao próximo indício de que pudesse agredir, física ou verbalmente, algum colega, o suspenderia.

          Ao sair da última aula para esperar, como habitualmente, ao fundo da rua da escola pela mãe, as dores que sentia pelo corpo latejavam insensivelmente. O peso que tinha debaixo das vistas acompanhava-o desde manhã cedo, incessante. Não lembrava o pai, lembrava a sua morte, e lembrava como a ninguém ocorrera mencionar o triste aniversário que decorria. Esperou pela mãe, sem saber a sua reacção aos acontecimentos do dia.

          Entrou, finalmente, no carro. Cumprimentou a mãe, que o saudou de volta sem expressão e pareceu nem olhar para ele. Ao chegar a casa, Andreia dedicou-se ao jantar. Mais uma vez, Filipe sentiu algum alívio pela mãe não reparar na sua cara, nas suas marcas infligidas por Marco. O bife com batatas fritas precisava de sal, denunciavam as suas papilas gustativas conforme nas notícias se falava de crimes maiores. A mãe não tardou em mudar-se para o sofá. Não havia sobremesa, e a água tinha acabado no jarro que usavam. Quando voltou de o encher, a televisão era a única fonte luminosa da sala e a mãe já se recolhera, detrás duma porta semicerrada, no seu quarto.

          Foi novamente raiva que preencheu, neste dia confuso, o coração adolescente de Filipe. A sua mãe não só não se chateara com ele por ter atacado um colega, como nem se apercebera das suas diversas marcas. O espelho não lhe mentia: o golpe no lábio inferior era razoavelmente discreto, mas o do sobrolho esquerdo era evidente, tal como o olho negro que o acompanhava. Os arranhões na face direita e no pescoço também não deixavam margem para dúvidas…

          Filipe, nessa noite, não foi verificar se a mãe se esquecera de ligar a máquina da roupa, nem desligou a televisão da sala. Não se preocupou com a água quente que, por detrás de si, enchia parcialmente a banheira, e que a mãe ignorara para no dia seguinte tomar, ao invés, um duche rápido. Tencionava seguir, isso sim, o exemplo daquele corpo de água quente, e arrefecer os seus ânimos já deitado na cama. Sabia que só depois disso conseguiria adormecer.

          Tão compenetrado estava na reflexão sobre a miséria que a sua vida se tornara que nem se apercebeu de se ter despido, de ter arrumado a roupa e ter vestido o pijama com que agora invadia o sossego dos lençóis.

          Um ano passou desde a morte do seu pai. Encontra-se na sua cama, depois de um dia longo, só, zangado, triste. A luz está desligada mas um fio de luz que provém da televisão da sala insurge-se no quarto, por debaixo da porta, iluminando tudo aos olhos do miúdo. Tem 13 anos. Pela primeira vez no dia, cansado de tentar dormir, começa a chorar. Chora, ainda assim, pacificamente, resignadamente. Chora como quem não tem mais que fazer, e lhe apetece fazer algo. As lágrimas são grossas, e quentes. Pequenos lagos de humidade formam-se na almofada e no lençol superior, que puxa para si, resguardando-se do frio e confortando-se. O fio de luz engrossa levemente. Sem qualquer som, muito devagar, a porta abre-se, apenas uns centímetros. Apreensivo, mas calmo, o jovem julga tratar-se da sua mãe, quiçá assomada por igual insónia. Tenta ignorar, finge dormir, mas apenas através da imobilidade e do silêncio, uma vez que não encerra os olhos invisíveis. A porta fecha-se e ele julga-se só, de novo. Já não chora. Fecha os olhos um segundo a pensar naquele momento. Não se consegue sentir só de novo. Qué-lo, mas não sucede. Procura-o, deseja-o, refugia-se na solidão que o evade. O conforto da tristeza faz-lhe falta neste dia. Não está triste: tem de estar triste. Não está só: devia estar só. Não consegue. Não se sente só, ou triste. Sente-se só miserável.

          Volta a abrir os olhos, não sabe quanto tempo depois. Afinal, ainda agora os tinha aberto e já tanto passou, já tanto mudou. A figura que o fita silenciosamente lê-lhe os pensamentos, plácida e seguramente. Estranha e não estranha isto. Um homem, com não mais do que 50 anos, estranhamente visível para ele no buraco negro do seu quarto, onde agora nem o fio de luz entra devidamente (as pernas da figura tapam parcialmente a porta, claro), olha-o. Reconhece-o imediatamente. As suas feições não mudaram. A sua expressão, no entanto, é inevitavelmente nova. É desprendida de tudo, é desconhecida, é vaga e é certa, porque não espelha nada, mas sabe tudo. É um processo mental estranho, o que o invade: está a sonhar, de certeza – mas nega-o e lamenta-o. E sabe que é verdade, porque a solidão lhe fugiu: o seu pai está ali. O homem debruça-se ligeiramente sobre ele, mas está mais perto sem ter dado um passo, pois conserva a mesma distância em relação à porta, obscurecendo o fio de luz na mesma medida. A mão que lhe toca não se faz sentir na sua pele. Não é quente e não é fria. É um olá e é um adeus, de tão curto e lento é o gesto ao longo da sua madeixa de cabelo negro, certamente invisível na escuridão. Adormece mal os olhos se fecham, embalados pela mão que o conforta, pelo pai que o deixou. Sem querer, mas deixou. Pelos vistos, não esqueceu. Mas deixou. Até agora.



***



          Se a morte do pai de Filipe não o alterara, apenas mudara a sua vida, a noite que acabava de terminar iria mudá-lo. O resultado imediato far-se-ia sentir em duas medidas simples: não continuaria a aceitar de bom grado a displicência da mãe, e não poderia continuar sem perceber o que se tinha passado. Alguém tinha entrado no seu quarto, não acreditava que fosse um sonho. Tinha de ser capaz de responder à questão que se impunha: quem, e como, entrara na sua casa e no seu quarto?

          A porta do seu quarto, conforme esperava, estava tão encerrada quanto a tinha deixado ao deitar-se na noite passada. Teve imediatamente o cuidado de ir à porta do seu apartamento, que estava encerrada, com o trinco corrido. Abriu a porta e não encontrou quaisquer marcas de entrada forçada. As chaves encontravam-se ambas, as suas e as da sua mãe, penduradas numa estrutura para o efeito, aparentemente intocadas.

          Nada indicava que aquilo tivesse sido mais do que um sonho. Aquela visita estranha, que não tinha como provar que tivesse sido real, não deixava de ter tido o seu efeito.

          Era ainda muito cedo. Quando chegou à porta do quarto da sua mãe, o despertador soou lá dentro. Um leve ranger da cama denunciou que a sua mãe se tinha erguido instantaneamente. Resolveu aguardar, até que a sua mãe saiu, pronta para o duche que substituiria o banho que tinha ficado adiado na noite anterior. Ela sobressaltou-se quando o viu, mudo, à porta do seu quarto. Ele ligou a luz do pequeno corredor, e continuou a mirá-la. Foi então que Andreia viu as marcas que, frente ao espelho, na noite anterior, Filipe registara.

          Andreia apercebeu-se imediatamente da intenção do filho. Filipe queria fazer falar, com o seu silêncio, as marcas que trazia no rosto.

          - Desculpa. Estava muito cansada, ontem… Eu sei que não é razão para te ignorar, mas entende que não o fiz por mal. – Aproximou devagar os dedos da cabeça do menino. - Quem é que te fez isso?

          - Só te tenho a ti. – Filipe sentiu que mentia, e afastou de imediato essa sensação da cabeça. – Preciso que me vejas, que me fales, e que me ouças, mãe.

          Andreia encostou a cabeça de Filipe ao peito, e não pôde deixar de se sentir feliz, por o filho precisar dela. Sentia-o diferente. Algo naquela luta que espalhara lesões pela cara do seu único filho o mudara, e ela devia mudar também. Talvez tivesse despertado nele coragem para a confrontar com a sua negligência.

          Seguiram com a sua rotina normal, com a excepção de interromperem o silêncio, principalmente com a história do rebuliço com Marco. Ao deixar Filipe na escola, a mãe saiu do carro e deu-lhe um beijo na testa, carinhosamente.



***



          Com a plena compreensão de que, ao contrário do que estava habituado, o mistério da figura nocturna podia apenas ser resolvido por ele, e com recurso a informação que apenas ele possuía, Filipe explorou todas as formas de tornar física a sua memória.

          Começou por descrever o evento num caderno. Depois, nos tempos livres, fazia pequenas experiências relativas ao som que faria abrir a porta do seu quarto e caminhar, ainda que muito ao de leve, na direcção da sua cama. Mais tarde, começou a esboçar a face que vira, e a compará-la com as fotografias do pai que encontrava. Apesar das parecenças evidentes, Filipe continuava com a clara noção que aquele acontecimento só podia ter sido fruto da sua imaginação, algo que precisava de sentir e viver naquele momento, e que portanto sonhara.

          Depois de alguns esboços do seu pai, ou daquele que imaginava ser o seu pai, regressado um ano depois, apercebeu-se de algo muito interessante, que em nada tinha a ver com as feições daquele indivíduo. Gostava dos seus desenhos. Achava-os bonitos. Eram figuras contemplativas, que não posavam. Estavam apenas inertes, suspensas num momento de imaginação, num momento de introspecção, e pareciam tão desprovidas de movimento que, mediante o mero pensamento em mover-se, se esvaneceriam qual nuvem leve no céu ventoso.

          Desenhava por traços que reforçava quando queria vincar, e deixava sós quando o traço que queria evidenciar era mais ténue. Gostava de usar um lápis, de preferência já pouco aguçado. Cada face era incompleta, porque ele parava mal se deixava adivinhar qual seria a figura completa, tal como cada descrição se deixa deter quando fica suficientemente definida a figura a que queremos fazer justiça. A mandíbula raramente estava desenhada nos seus esboços, normalmente perfis. Deixava-se adivinhar, mas não estava desenhada claramente. A expressividade fazia-se em toda a face, marcando tão bem quanto possível as principais linhas associadas a esta. Os olhos, as sobrancelhas, a pele à volta destas. Os lábios, a boca, as linhas do rosto associadas a estas. As maçãs do rosto e as orelhas. Os cabelos e os pelos faciais. E ele gostava dos seus desenhos.

          Cedo se apercebeu, ao esboçar colegas, amigas, animais de estimação até, que não era o único que gostava. Um dia desenhou um senhor que viu na rua. Não reparou nas roupas andrajosas, nos sapatos marcados, já com buracos. Não atentou nas marcas de pobreza ou de fome do senhor, ainda que não as ignorasse. Notou sim a sua face, a sua expressão, e a enorme cicatriz que percorria a sua cara desde a têmpora direita, a escassos centímetros da órbitra, até à margem mandibular. Desenhou-o e evidenciou no desenho todas as características que se deixara adivinhar apenas por mirar aquela face. Entre elas, omitiu a cicatriz. E tal como elas, a face do homem pobre e com fome, pela força da expressão que a assomava, fazia ver a cicatriz. O padrão das linhas do rosto e dos pelos faciais preenchia o vazio duma cicatriz que, de tão grande, se via sem ser desenhada.

          O seu Professor de Educação Visual do 9º ano foi chamado à atenção para aquele seu desenho e, depois disso, deu-lhe um plano particular de trabalhos de casa e de aulas, que viu introduzir a tinta e diversos métodos de desenho nos materiais e ferramentas do nosso jovem artista, que agora parecia crescer sem as ameaças de outrora: o isolamento, a orfandade (de pai, por certo, mas também de mãe), a miséria emocional, e a falta de objectivos.



***



          Apesar de não o procurar activamente, não desistiu de encontrar o senhor que o visitara à noite. Muitas vezes, ao vislumbrar de relance uma sombra, julgava vê-lo. Ao fechar a persiana do quarto, acreditava tê-lo visto reflectido noutra janela, ou a passar na rua. Porém, quando olhava uma segunda vez as sombras, os reflexos ou as pessoas que passam, bem como os finais de becos obscuros, não estava lá ninguém. Quanto muito, alguém que lhe é estranho, mas definitivamente material, ocupava o espaço que a sua imaginação declarara ser dele.

          Talvez fosse na sua arte que a figura do homem se mantinha na sua vida, apesar de há muito ele ter quebrado a convenção de apenas o desenhar a ele. A sua arte tinha dois resultados: proporcionava-lhe momentos de relaxamento, de entrega descontraída, por um lado; trazia-lhe atenção e pressão indesejadas pelo outro.

          Os amigos não se cansavam de o empurrar na direcção duma carreira artística, enquanto da parte dos sempre sábios e esclarecidos adultos as opiniões se dividiam. Havia os que achavam que não devia desperdiçar os seus talentos, mas havia também aqueles que lhe anteviam um futuro de desempregado e de pária, parasita social. Cansado duma conversa, por vezes com tons de discussão, que não tinha querido fazer surgir, adiava sempre uma decisão acerca do seu futuro.

          O final do 9º ano, porém, impunha-lhe uma decisão, ainda que relativamente parcial. Afinal de contas, poderia sempre mudar de área mais tarde, ou seguir um curso universitário de cariz diferente. Isto se sequer fosse para a Universidade. Já não sabia nada.

          Em casa, a sua mãe emprestava-lhe um ouvido e um ombro amigos em relação a esta discussão, mas reservava o seu julgamento. Não opinava. Apesar do historial deles de negligência, Filipe entendia que a sua mãe apenas não queria ser mais uma das vozes a engrossar qualquer dos lados, quando por fim ela própria dizia:

          - Filipe, todos têm opinião, todos vão querer enfiar-ta pela goela abaixo. – Ria-se. – Se assim é, é porque de facto os teus desenhos não deixam ninguém indiferente. Mas a decisão será sempre tua.

          Assim, ele continuava a desenhar como forma de pensar, e a julgar-se por desenhar, que tanta atenção chamava. Só não conseguia, aparentemente, chamar a atenção daquele que tinha originado tudo aquilo.

          Finalmente, chegou um momento que Filipe temia, uma vez que mal tivesse um pronúncio oficial fruto dessa situação, uma das facções que procurava tê-lo na mão e ditar-lhe o destino teria armas para o fazer. A psicóloga da escola estava encarregue de encontrar a aptidão académica dos alunos do 9º ano, de modo a que estes mais facilmente encontrassem o seu percurso e o seu lugar na sociedade. Uma senhora ainda jovem, com pouco mais de 30 anos, de modos cuidados e com visivelmente pouca experiência em lidar com uma turma, dirigiu-lhes algumas palavras que Filipe não ouviu. Depois passou a distribuir uma série de folhas que eles deviam preencher. As mãos de Filipe suavam; ele não tinha ouvido a psicóloga dizer que aqueles exercícios e o resultado deles apenas tinham como intenção ajudá-los a perceber melhor quais as suas aptidões. Ele não a tinha ouvido dizer que aqueles testes podiam ter resultados surpreendentes, uma vez que apesar de se basearem nos padrões de comportamento e nas escolhas das pessoas para aconselharem o rumo a seguir, podiam não servir todas as pessoas, não se adequar a todas as personalidades e a todas as bases culturais de cada um.

          Filipe preencheu os questionários devagar, e calculadamente. Mal se apercebeu de como todos terminavam antes dele e de como hesitava nas questões mais simples. Quando, finalmente, se levantou da cadeira, só se encontrava na sala a psicóloga, que imediatamente se ergueu também e guardou os seus questionários na mala que trazia para o efeito.

          - Desculpe a demora… - Disse Filipe, atrapalhado.

          - Não faz mal! Só estou com um pouco de pressa porque tenho outra turma já a seguir, do outro lado da escola. – Pôs a mão no braço de Filipe e acrescentou: - Quando uma pessoa está doente, é normal demorar um pouco mais, não te preocupes.

          Enquanto saíam da sala, Filipe pensou no quão preocupado estaria, no aspecto que teria induzido a si mesmo, para parecer doente à psicóloga que agora caminhava tão rapidamente quanto podia pelo corredor, em cima dos seus saltos altos, que claramente não estava habituada a usar.

          A verdade é que, dois dias depois, quando tinham agendado receber os resultados do teste de aptidão, Filipe ficou em casa, com febre. Apesar de se sentir genuinamente debilitado, perguntou-se se não teria desenvolvido uma espécie de super-poder que lhe permitia ficar doente sempre que estava prestes a definir o seu futuro.



***



          Na semana seguinte, quando regressou à escola, dirigiu-se quando pôde ao gabinete da psicóloga, no seu horário de atendimento. O seu gabinete era no rés-do-chão de um edifício antigo, o mais antigo da sua escola. Enclausurado a seu centro encontrava-se um pequeno jardim, de árvores igualmente pequenas. A Primavera ia já bem encaminhada, pelo que o verde vivo, ora mais claro, ora mais escuro, se fazia transparecer nas plantas e árvores desse jardim pobremente iluminado. Os acessos a esse jardim permaneciam vedados aos alunos, que nunca tinha visto caminhar no pequeno caminho de terra que atravessava o espaço verde e unia as permanentemente cerradas portas.

          Hoje, um funcionário da escola tinha estado de volta das plantas, talvez em tarefas de jardinagem ou de rega, simplesmente. Agora saía pela porta pela qual Filipe passava nervosamente, deixando o jardim tão deserto como era normal.

          Bateu à porta do gabinete, e foi-lhe automaticamente dito que entrasse. Os nervos impediram Filipe de ouvir a psicóloga, que perguntou:

          - Peço desculpa… Está aí alguém?

          - Estou, sim. É o Filipe Carvalho.

          - Entre, entre!

          Quando entrou, foi uma cara sorridente que o recebeu.

          - Que faz aqui, Filipe?

          - Estive doente na última sessão que a minha turma teve consigo. Queria saber o resultado do meu teste…

          - Ah, sim. Claro! – A psicóloga da escola começou a vasculhar a sua mala, que continha os resultados de várias turmas, além da papelada com a qual prendaria outras turmas mais. Passado o que pareceu a Filipe uma pequena eternidade, e quando já lhe parecia ter ensurdecido devido ao frenético bater do seu coração, uma folha com os nomes dos seus colegas de turma saltou da mala.

          - Vamos lá ver… - Disse a senhora enquanto procurava Filipe Carvalho na folha e consultava o resultado. Ele olhava o jardim pela janela, distraidamente. – Bem, os teus resultados indicam que a tua aptidão é muito superior na área das Ciências Naturais. Na área da Literatura e Humanidades também tens alguma aptidão, mas não tanta como nas Ciências. Satisfeito?

          Filipe não respondeu. Ao mesmo tempo que a psicóloga lhe indicava a sua aptidão para as Ciências, à sombra da árvore que estava por detrás da janela do seu gabinete, à direita, a figura tinha-se rido. Uma risada leve, curta, de descrença, entrecortada pela respiração inaudita duma face que não passava de uma sombra, mas que ele vira tão claramente. Sem um som, aquele homem que o visitara há já quase dois anos, tinha-se rido, incrédulo, da declaração inocente da psicóloga que agora se perguntava o porquê do olhar esgazeado do aluno.

          - Está tudo bem? Estavas à espera de outro resultado? – A psicóloga olhava com um ar inquisitório, levada de surpresa pela reacção do rapaz.

          Ele desviou os olhos do homem, que parecia continuar entretido com a situação, pois abanava a cabeça sorridente.

          - Sim, estou contente com o resultado. – Levantou-se da cadeira, sorridente, e voltou a deter o olhar na sombra da árvore, agora sem qualquer figura presente. A ausência do homem fez suprir o seu sorriso, mas manteve a sua convicção. – Obrigado, desculpe incomodá-la.

          - Não incomodas. Adeus! – Assim se despediu, perplexamente, a senhora, que continuava a mirar o jovem sem piscar os olhos, na esperança de entender as pausas dele, distraído por algo no jardim que estava por detrás dela. Restou-lhe apenas a curiosidade, uma vez que entre as árvores e as plantas não se escondia a resposta. Tudo estava tão calmo como sempre.

          Filipe também olhava as plantas, mas não via calma. Via cada movimento de cada elemento da folhagem e esperava vislumbrar as vestes escuras do homem que tinha regressado. Não acreditava tê-lo visto, sentia-se louco. Lembrava-se perfeitamente daquela noite em que o tinha visto pela primeira vez, mas tinha como albergue da sua sanidade o facto de tudo poder não passar dum sonho.

          Hoje, à luz da manhã radiosa de Primavera, o assalto da imagem dele deixara duas impressões: ele era inegável, fosse produto da loucura de Filipe ou de algum outro fenómeno; Filipe seguiria artes. Afinal, o homem rira-se da hipótese dele seguir Ciências. Era um facto que Filipe gostava imenso de temas de Ciência e História, e tinha como hobbies dedicar a sua curiosidade a essas áreas. Era um facto que Filipe tinha muito boas notas nas disciplinas ligadas a Ciências, línguas, História e Geografia. Pelo contrário, tinha quase sempre notas inferiores na área das artes, na Educação Visual.

          Ainda assim, era evidente que o que gostaria de fazer mais tarde seria ser artista, desenhar ou pintar. Tinha muito a aprender, sabia da exigência da Geometria e da dificuldade que teria em impor-se no meio artístico, mas era sem dúvida o que desejava. Cada passo que dava, primeiro pelo corredor, sempre à procura do homem no jardim, e mais tarde no recreio da escola, lhe dava maior confiança. A cada amigo que passava contava a boa nova: já sabia o que ia seguir no ano que vinha, a psicóloga confirmara a sua inegável aptidão para as Artes!



***



          Por muito tempo que passasse, continuava sem esquecer o homem que julgava ser seu pai, e que por duas vezes o tinha ajudado a melhorar a sua vida. Estava, no entanto, grato pelo facto da sua aparição não se tornar em algo banal. Continuava sem partilhar que por duas vezes tinha visto o pai com fosse quem fosse. Os muitos amigos que tinha angariado no Ensino Secundário pouco tinham ouvido falar do seu pai, da sua vida e da sua morte. Filipe, para todos os efeitos, era daqueles órfãos que preferia não falar sobre o progenitor perdido, e ninguém sabia a história do seu desaparecimento.

          Já não tinha o Marco, ou outros como ele, na sua vida. O sucesso que encontrara na escola e o envolvimento no mundo artístico tinham-no tornado uma pessoa mais sociável, e a sua personalidade enquadrava-se melhor no seio de pessoas de mente aberta. Um jovem inteligente, sensível e interessado tem o condão de reunir o desprezo das massas, mas também o de atrair para junto de si outros como ele e, há quem diga, o sexo oposto.

          Neste último aspecto, Filipe não se podia queixar. Depois de um namoro ou dois, de fugida, curtos e intensos, no Secundário, tinha encontrado uma rapariga digna do seu interesse.

          Gabriela foi quem, pela primeira vez, lhe fez acelerar o batimento cardíaco só de a ver. As conquistas que tivera tinham sido raparigas que o tinham interessado por, acima de tudo, estarem interessadas nele. Faziam de tudo para o conquistar, talvez atraídas pelo seu talento, ou pela avidez com que se dedicava ao recém-descoberto mundo social. Ela não.

          Gabriela era daquelas raparigas misteriosas. Tão rapidamente parecia interessada como passava por ele no corredor e não lhe dirigia a palavra. Era uma mulher bonita, de sorriso fácil, sempre rodeada dos seus muitos amigos, que parecia não ter uma única preocupação na Terra, que não fosse a de se levantar e iluminar um pouco o mundo por onde passasse. Luminosa, era assim que Filipe a via. Despreocupada, seria outra excelente definição. Mas a melhor delas era a de descomprometida.

          A escola era o campo de acção primário no qual se cruzavam, mas as saídas nocturnas só vinham complicar a situação. Gabriela era descomprometida nas atitudes, parecia ser capaz de advogar por qualquer diabo, se isso picasse uma amizade. E tinha muitos amigos. Isso é que preocupava Filipe no descomprometimento de Gabriela: era muito bem rodeada por rapazes que, sendo amigos, pareciam não descurar a oportunidade de algo mais. Talvez fosse até isso que a levasse a ter a atitude de brincalhona displicente com a qual provocava todos, seleccionando um por dia para levar perto da humilhação. No final desse dia, no entanto, era sempre incapaz de não lhes afagar a cara, dar uma palmadinha no ombro ou, se fosse um amigo particularmente interessante, dar-lhe a mão ou um beijo na cara. Servia esse derradeiro gesto de pedido de desculpa por usar o seu humor aguçado para o afastar todo o dia.

          Os seus primeiros contactos foram estranhos. Ambos tinham amigos em comum, e começaram a cruzar-se mais proximamente por se darem com essas pessoas e saírem, ou juntarem-se na escola. Pior do que ser humilhado como os restantes, era o tratamento inicial que Gabriela reservava para ele. O desprezo.

          Não se conheciam e, ao pé dela, Filipe ficava mudo. Primeiro, porque ela não tinha qualquer pudor em centrar em si as atenções. Depois, porque ele não queria ter simples conversas de café e ter a oportunidade de ser humilhado por ela. Gostava de falar com ela, talvez a sós.

          Finalmente, houve um dia no qual isso foi possível. Foram todos sair, num Sábado à noite. Muitos, em virtude da época dos testes e do aproximar dos exames do final do 12º ano, foram embora cedo para casa. Depois de algumas despedidas e daqueles momentos em que combinavam algo sobre o qual teriam de verificar agendas e voltar a comunicar, fosse por mensagens de telemóvel ou nas redes sociais, Filipe e Gabriela ficaram juntos, na mesa do café que estava prestes a fechar. Filipe fizera tudo para esquecer as responsabilidades nessa noite, na expectativa que Gabriela fizesse o mesmo e pudessem ficar a sós. Quando aconteceu, deu por si de palmas suadas, coração a ribombar, e sem palavra.

          - Acho que nunca te ouvi dizer mais de três palavras seguidas! – Mediante tal acusação, Filipe sorriu de volta a Gabriela, que parecia tão despudorada como sempre. Ela riu-se, quando ele não respondeu. – Diz lá, o que estudas?

          Ele sorriu, maroto, e cruzou os braços, como se não fosse responder-lhe. Gabriela voltou a rir, lançando a cabeça para trás, desprendida e ruidosamente. Depois mirou-o atenta, decidida a conduzir um jogo do sério até que ele lhe respondesse.

          - Ando em Artes.

          - Três palavras. Exactamente três palavras! – Riu-se. – Com que então queres ser artista? Vais ser um dos predestinados que, entre milhões de pessoas, vais ser o que tira lucro da sua arte?

          - Sim. E tu, que estudas? – Gabriela riu-se de novo. A atitude dele desarmara-a.

          - Estou em Humanidades.

          - Vais ser uma das predestinadas que, entre milhões de pessoas, vais conseguir tirar um curso de jeito depois de fazeres Humanidades?

          Ela sorriu, percebendo que tinha sido apanhada no seu próprio jogo. Mas não se deixou ficar:

          - Sim. Diz-me lá que arte tão espantosa é que tu produzes se estás tão convicto que vais ter sucesso?

           Filipe já tinha olhado em volta várias vezes nos últimos minutos, e apenas por não querer interromper a tensão não tinha dito nada antes:

          - Eles querem fechar o tasco. Explico-te tudo enquanto te levo a casa.

          Levantaram-se ambos e Filipe tomou as rédeas da conversa. Sendo uma pessoa tendencialmente tímida, era uma atitude rara. Porém, perante alguém que gostava de ser o centro das atenções e que o tinha provocado para falar, foi a solução que achou mais indicada.

          Explicou-lhe o que gostava de desenhar, contou-lhe quando começou, ainda que não como. Mostrou uns laivos do seu intelecto ao explicar-lhe alguma da história da evolução técnica do desenho artístico, e ao deslindar qual a posição da sua arte em relação à arte contemporânea. Chegados à porta de casa dela, ela ainda mal tinha dito uma única palavra, e assim ficaram, com a voz dele a pairar, alguns minutos mais.

          Então, Filipe perguntou-lhe:

          - Que tens a dizer de tudo isto?

          - Estou muito impressionada! Se não te safares com o teu desenho, tens futuro como professor ou contador de histórias… - Alargou o sorriso tímido que lhe fugia há alguns instantes.

          - Não me vais passar a mão pela cabeça, ou dar-me uma palmadinha nas costas, como fazes aos teus amigos depois de os teres achincalhado?

          Ela riu-se, percebendo que ele a observava ou, pelo menos, lhe dava atenção.

          - Não. Tens de me dar oportunidade de te tratar pior. Talvez te dê a mão, então.

          - Muito bem. – Respondeu Filipe, sorridente. – Temos de combinar um cafézinho. Sim?

          Ela acenou com a cabeça. Trocaram olhares durante alguns instantes, cada um perguntando-se o que se passava na cabeça do outro, e sem deixar que demasiado do que eles mesmos pensavam tomasse conta da situação. Finalmente, Gabriela aproximou-se e despediu-se, com um beijo em cada face, enquanto a sua mão agarrava uma manga do casaco dele. Depois de mais um olhar trocado furtivamente, ela virou costas, abriu a porta do prédio e subiu. Ao virar a esquina, antes de entrar no elevador, confirmou que ele ainda estava ali, à espera para colher cada segundo que pudesse da sua imagem. Não puderam deixar de sorrir.

          Filipe aguardou uns instantes. Por um lado, as pernas estavam demasiado trémulas para arrancar viagem. Por outro, não queria abandonar aquele seu posto, não fosse a sua musa voltar a confirmar se ele estava ou não interessado, com mais uma espreitadela. A luz do prédio apagou-se para não voltar a acender.

          Filipe começou a caminhar e, pela primeira vez em muito tempo, não procurou nas sombras os traços do pai. Não olhou com atenção para cães ou sem-abrigos, à procura de traços de vida que pudesse mimar em desenhos. Não reflectiu sobre a noite na qual a figura do pai o visitara ou sobre quando, sob uma árvore, ele o trouxe até ao momento presente. Ao chegar a casa, apesar de ser uma da manhã, não tinha pinga de sono. Pegou nos seus lápis mais caros, e no seu melhor papel, e desenhou a cara de Gabriela. Nessa noite, foi ela quem lhe entrou no quarto. Definitivamente, aí tinha sido apenas em sonhos.



***



          Gabriela e Filipe já namoravam há mais de três anos. Filipe já há dois, aproximadamente, pensava no pai, e porque este não aparecia em ponto algum há tanto tempo. Filipe escolhera o seu curso, a licenciatura em Belas Artes, depois de muito reflectir sobre isso. Tivera aí muitas dificuldades, já que nem todas as disciplinas que fizera eram do seu interesse, e nem sempre eram ministradas justamente, a seu ver. Muita tentação procurou desviá-lo, e ele sempre resistiu. Ponderou ceder, para evocar o pai, mas foi por esse homem e o respeito que lhe tinha, que nunca cedeu a outras mulheres, a drogas, a esquemas para passar ilicitamente a uma ou outra cadeira, ou planos de maldades indizíveis para se vingar dos invejosos que odiavam o seu sucesso.

          Gabriela, a estudante de Literatura Europeia, começara já a dedicar-se à escrita, ainda que não há tanto tempo quanto o que dizia que devia fazê-lo, para ultrapassar a fase em que ia, definitivamente, ser péssima. Costumava enumerar as constrições que um escritor em fase de início de carreira passava: as brancas constantes, a incapacidade de gerir os ritmos, a dificuldade em diferenciar os momentos, a adesão aos preconceitos sociais que impedem a escrita verdadeiramente criativa.

          Agora que ambos terminavam os cursos, e quando uma grande escolha se entrepunha entre eles e a vida a sério, Filipe tinha saudades do pai. A vida é feita destes momentos em que cremos cerimoniosamente que viver é esperar pelo que vem a seguir. É chegar àquele objectivo simbólico que vai mudar toda a nossa existência, e perceber que aí reside a felicidade. No instante no qual o conseguimos, desiludimo-nos com a nossa opção, criamos todo um novo objectivo de vida, todo um novo momento a partir do qual teremos a vida ideal. Essa nova realidade será a que nos trará os momentos de leitura, o tempo para visitar museus, dinheiro para viajar, tempo para ver o que de melhor se faz em televisão e cinema, oportunidade para levar o exercício físico a sério, mais tempo para os amigos e a família. No entanto, já temos todas essas oportunidades, e provavelmente já cumprimos muitos desses preceitos. No entanto, a nossa mente projecta em milésimos de segundo as nossas horas, os nossos dias, os nossos meses, e os banhos de perfeição que os enxaguarão, mal terminemos esta fase. A felicidade reside na capacidade de aceitar o passado, viver o presente, e não nos demorarmos com o futuro. Mas ninguém o sabe, ainda, e só o saberá quando puder lamentar tê-lo ignorado.

          Assim, mal terminadas as respectivas formações, logo um objectivo, uma linha a ultrapassar, se colocou defronte de Filipe e Gabriela. Filipe sonhava com Inglaterra, uma vida no rebuliço londrino. Um mestrado na área artística, apesar das novidades alla bolognese, não lhe traria nada para o traçado profissional que imaginava. Gabriela, por outro lado, não descurava uma vida académica, e pretendia obter um mestrado e, quiçá, um doutoramento.

          Se Filipe aliciava Gabriela a estudar em Londres, Gabriela queria-o a estudar em Portugal, consigo. Se Filipe provocava Gabriela a devotar-se à sua escrita, a trabalhar apenas como empregada de bar a tempo parcial, numa cidade cosmopolita que a pudesse inspirar, Gabriela provocava-o o encontrar outras fontes de inspiração em Portugal, enquanto ela podia estudar junto da família.

          Não tinham discutido seriamente o assunto até que, de facto, a urgência da decisão os empurrava para tal. A sua relação brincalhona e leve dificultava o tratamento de assuntos sérios, descambava sempre para o tratamento ligeiro e galhofado de qualquer temática. Filipe, após tanto tempo, e pensando cada vez mais nisso, não tinha sequer confessado a Gabriela que podia ser louco, por ter em duas ocasiões sido visitado pelo seu pai falecido…

          Filipe tomou, então, uma decisão. No último dia que teriam no seu quarto alugado, antes de se despedir definitivamente dele para regressar a casa enquanto determinava o que fazer a seguir, discutiriam o assunto dos seus futuros seriamente.

          Gabriela, ao chegar ao seu apartamento, tinha diferentes intenções. Mal se encerrou, por detrás de si, a porta do quarto de Filipe, e já ela procurava despedir-se em beleza daquele local de muitas aventuras. Ele sentara-se, compenetrado, na cama, e ela sentou-se sobre ele, enrolando a anca dele com as coxas, a t-shirt incapaz de ocultar a isenção de soutien, transparecendo a tumescência dos seus mamilos. Conforme a sua boca enredava a orelha de Filipe, e a sua mão desabotoava as suas calças, a tarde de final de Primavera com cheiro de Verão a escoar pela parede, ele só conseguia pensar que não era aquilo que planeara.

          Sempre agressiva, Gabriela não se demorou com ele. Sem cerimónias, nem alteraram a posição. Não fizeram barulho, ela apenas soou o alarme ao de leve junto do seu ouvido, que trincou subsequentemente. Ele suprimiu todos os sons, e apenas a agarrou profundamente.

          Com algum suor superficial agarrado aos corpos, o dela nu, o dele já equipado da cintura para baixo, e enquanto ele apertava os atacadores das sapatilhas, começou finalmente a falar.

          - Temos de conversar seriamente sobre o que vamos fazer para o ano. A sério. – Filipe tinha já a voz firme.

          - Tem calma, estás cheio de pressa! Agora vamos relaxar, temos um Verão todo para decidir isso. – A sua voz ainda flutuava, calma e melosa, sem se segurar.

          - Não, Gabriela. Só vamos estar a adiar o inevitável, sem razão nenhuma. Se vamos decidir isto, começamos agora.

          - Mas qual é a pressa? Há alguma coisa que não tenhamos já dito sobre o assunto?

          - Claro! Nós ainda não dissemos uma palavra séria sobre isso. Não faço a menor ideia sobre a tua real opinião, sinceramente.

          - Filipe, já falamos imenso sobre isso… - Gabriela agora vestia-se, e fitava séria e expectante o namorado.

          Filipe falou calma e seriamente. O tom acusatório de há instantes desaparecia sobre o auto-controlo de quem respeita o interlocutor, e lhe reconhece limites:

          - Sabes tão bem quanto eu que nós não conversamos. Nós brincamos, nós trocamos piadas, nós insultamo-nos graciosamente. Não trocamos ideias.

          - O que queres dizer com isso?

          - Às vezes sinto que não sabes o mais básico acerca de mim…

          - Diz-me lá, o que é que eu não sei? – Gabriela expressou-se com um sorriso que dizia perceber os anseios dele, dizia vê-lo mergulhado numa daquelas situações da vida em suspenso, quando tudo são incógnitas e apenas uma definição tirará a alavanca do engenho e permitirá ao tempo rolar harmoniosamente. Filipe percebeu-o e não se ofendeu com isso.

          - Por exemplo, nunca te apercebeste, apesar de tanto interesse inicial, qual o meu real motivo para ter começado a desenhar… - Filipe desviou o olhar, ciente que apesar do tom neutro que tinha usado, a tinha acusado de algo grave, e no qual tinha muita responsabilidade. Ao afastá-la da vista, evitou ver a expressão desiludida e o marejar dos seus olhos, que cedo se espetaram no chão, enquanto músculos desconhecidos lhe contorciam o coração e a face, num ímpeto de choro que controlou com avidez, com empenho.

          Filipe via a luz a penetrar na parede do quarto. As portadas da janela branca estavam cada uma em posições diferentes. O lado esquerdo repousava sobre a parede que o efeito da luz nos seus olhos fazia parecer de um cinzento muito claro. A parede branca, escurecida pela luz que se refletia no fundo da sua retina, contrastava com a parede luminosa, dum amarelo claro, mas vivo, que era o alvo do Sol. Desse lado, a portada estava fechada e reflectia o interior do quarto levemente, sem grande definição. Foi então que viu o pai. A sua expressão séria, de boca cerrada e os músculos que ladeiam a mandíbula, já por detrás da dentição, contraídos, apenas era móvel pelo muito ligeiro abanar de cabeça que o acompanhavam. Perante os seus olhos, várias cenas se desenrolaram e lhe esclareceram a mente, provocadas pela visão da figura reflectida no vidro, que não se mostrava em ponto algum do quarto. Viu a forma como Gabriela brincaria com a verdade acerca desse homem, essa figura que voltara a ver, e como se ofenderia com isso. Viu como qualquer um deles ficaria magoado e transportaria para o sarcasmo brincalhão a vingança por ter abdicado do seu rumo idealizado para bem do outro. Viu como apesar de todo o amor que lhe tinha, aquela não era a mulher para si, porque nunca seriam capazes de ultrapassar problemas desse tipo. Não sem falarem um com o outro, não sem poderem confiar um no outro, independentemente do quão risível fosse a confissão. Viu como nunca pensara realmente em abdicar do seu sonho por ela, que pensava mais na possibilidade de voltar a ver o seu pai na azáfama de Londres do que em se dedicar a fazê-la aí feliz. Soube, mal viu o pai, que lhe era mais importante aquela indefinível existência do que esclarecer aquilo com uma pessoa que a tal se recusava, talvez por já saber o desfecho.

          Quando se apercebeu, estava já de costas voltadas para Gabriela, quando tudo não passara de um culpado desviar de olhar. Foi então que falou:

          - Vou para Londres. Lá vou ter oportunidades que aqui muito dificilmente surgiriam. Mas acho que devias continuar a estudar aqui. Tens todo o direito a ser feliz…

          Já com uma lágrima a vincar-lhe o rosto, Gabriela perguntou:

          - Então é assim? Cada um segue o seu caminho?

          - Sim, acho melhor…

          Depois de alguns minutos de contenção, ela soltou o choro. Ainda de costas voltadas, Filipe sentiu que se tentasse confortá-la tudo seria pior, talvez voltassem a ver-se na mesma situação em breve. Procurou então, de olhos inconstantes, a figura do homem que lhe abrira os horizontes, que o virara para Londres.



***



          Foi com grande pesar que Andreia, a mãe de Filipe, o viu partir para a cidade cosmopolita onde este sentia poder crescer. Crescer como pessoa, crescer como artista, crescer profissionalmente. Mal sabia ela que o seu filho passaria por momentos tão difíceis. E nunca saberia. Filipe soube sempre valorizar o bom e esconder-lhe o mau. Viver num país estrangeiro, por muito próximo que seja e por muito que se antecipe essa oportunidade, pode ser incrivelmente árduo. Sem conhecer ninguém, Filipe teve dificuldade para encontrar onde morar e onde trabalhar. O seu inglês, óptimo em Portugal, tinha carências reais em Inglaterra. Os preços, esses não eram difíceis de entender: altíssimos, normalmente, muito altos, se com sorte.

          Filipe instalou-se, inicialmente, numa hospedaria barata. Num quarto comum, não tinha privacidade, nem onde cozinhar. Muitas vezes comia sanduíches ou batatas fritas de pacote e pouco mais, uma vez que tudo era tão caro. O seu dinheiro evaporava-se como o álcool duma ferida, dolorosamente. Dia após dia procurava alojamento, e emprego. Alugar um quarto era caríssimo, e sem emprego não teria dinheiro para adiantar as duas rendas que tradicionalmente se pagam ao celebrar o acordo. Podia pagá-las, mas ficaria sem dinheiro, praticamente. Muitas vezes pensou no pai, no porquê deste não aparecer para lhe iluminar o caminho. E desenhava igual número de vezes, nas raras horas de sossego na hospedaria.

          Enquanto desenhava num pub, ao final da tarde, depois de lhe terem dito que não era o que procuravam quando ele lá se candidatou a um emprego, Filipe foi interpelado. Um homem já com 50 ou 60 anos, de barba longa e esbranquiçada, apesar do cabelo ser ainda maioritariamente negro, e relativamente curto, abeirou-se dele e perguntou-lhe, ruidosamente:

          - Não és de cá, pois não?

          - Não, sou português.

          - Que porcaria infernal é que estás a desenhar aí?

          A cabeça e o busto de uma jovem iluminada no seu lado esquerdo, e embrenhada em escuridão no direito formavam-se no papel. Tinha visitado um bar numa das noites anteriores, e o magnetismo da vocalista da banda que tocava uma mistura entre rock e blues tinha polarizado os seus sentidos, ao ponto de o inspirar, obviamente.

          - É só uma cantora, num bar.

          A nota que a jovem lançava ao ar estaria no cerne de uma triste sucessão de versos, segundo o que afirmava a sua expressão. A sua boca estabelecia um gesto perfeito, em beleza e em harmonia sonora, segundo era possível aferir pela notoriedade imóvel inscrita por Filipe no papel, que de resto era sem valor, sujo.

          O homem deteve-se demoradamente no desenho, e criticou aquilo que talvez fosse a única crítica plausível a fazer àquele desenho. Filipe não se concentrava, apesar de o conseguir, na execução de objectos inanimados:

          - Ela parece que está a cantar no banho. Esse projector parece um chuveiro! Anda comigo, oh português.

          O homem não esperou, saiu logo do pub, cuja porta estava quase de imediato à esquerda de Filipe. Este seguiu-o, relutantemente, depois de fechar o caderno com o papel no meio.

          Chegado à rua, o frio londrino instalou-se de imediato nos seus ossos, cuja distância para o ambiente se reduzia a olhos vistos, devido à pobre alimentação que fazia e ao escassear de agasalhos limpos. O homem olhava fixamente um edifício ao longe. O candeeiro de iluminação, com a sua luz amarela, incidia parcialmente sobre o desenho duma cabeça, deixando metade desta visível. Na realidade, uma multiplicidade de meias faces em leque ocupava aquele espaço. Atónito, Filipe apreciou a qualidade do traço, em tudo semelhante ao seu. Aquela cabeça tinha, no entanto, tanto de similar ao seu trabalho, como de brutalmente distinto. O velho desenhado a negro podia ser um trabalho seu. Contemplativo, sem posar para a imagem, a figura mirava pensativamente a morte, contemplava quiçá um cemitério. O seu olhar triste e o desapego desistente podiam ser originários da sua mão. A grande questão residia nos outros traços, nas outras cores. O velho movia-se.

          A imagem era quase visível em toda a sua magnificência apesar da fraca iluminação. A posição final, de perfil, estava claramente iluminada. O espantoso era que a sucessão de perfis que se enredava antes dessa posição definitiva empolava de vida a imagem, dando movimento ao velho. Em várias cores, começando por um verde-claro (muito pouco visível a esta distância e com esta luz), passava por diferentes tons de verde e azul, transitava diferentes tons de vermelho escuro e castanho, terminando em cinzentos crescentemente mais escuro e culminando no mencionado trabalho Filipesco, o perfil final. Estas cores, destes sucessivos desenhos, encenavam o movimento do homem, a tridimensionalidade da sua face, a complexidade do seu sentir. Agora, o velho parecia começar o movimento a olhar uma campa, porventura a da falecida mulher, e terminar afastando o olhar para espairecer a mente, apenas para se deparar com uma interminável fileira de campas e uma árvore despida, macabramente a adorar os céus. Era brilhante, era genial.

          O homem barbudo rosnou então a seguinte pergunta:

          - Foste tu que estragaste aquele muro com a tua poluição visual inútil, português? Foste tu que desperdiçaste tintas variadas a tentar ofender o estômago dos londrinos?

          - Não, não fui. Garanto-lhe que não fui eu quem fez aquilo… - Filipe gaguejou isto perante o ar ameaçador dum homem bastante maior que ele, de olhos encovados, que se impunha sobre ele na rua deserta. Mas desejou ser o verdadeiro autor daquelas imagens.

          - Aposto que dormes debaixo duma ponte.

          - Não, estou naquela hospedaria ao fundo da rua.

          - Ainda pior! És burro? Não tens vergonha por pagares para dormir numa espelunca daquelas?

          - Na verdade, acho que sim.

          - Vais-te enrolar num canto da minha casa, português, e não me deixes ouvir-te grunhir toda a noite, ou ponho-te com o cão, no terraço!

          O homem começou a andar, ignorando se Filipe o seguia ou não. A hospedaria era onde guardava todas as suas roupas e onde tinha quase tudo o que possuía em Londres, excepto o pouco que trazia consigo. E mais!: aquele homem era visivelmente louco! Só alguém tão louco como ele poderia segui-lo. Decidiu apenas confessar a primeira ideia:

          - Tenho tudo na hospedaria. Agradeço muito a sua oferta, mas não posso aceitar.

          O homem continuou a andar, e ele seguiu-o, a tentar explicar-se. Passou em passo lento em frente à hospedaria. Filipe entrou. Ficou aliviado por ter terminado o seu suplício, apesar de não conseguir deixar de pensar nos dois velhos que acabara de conhecer. O vivo, que estava num muro a erguer os olhos para um cemitério, e o morto, gélido, sem coração: aquele que esperava por ele lá em baixo, do outro lado da rua, impaciente. Mal olhou para a rua, ansioso por confirmar que o homem o abandonara displicentemente, chocou-se com a anterior constatação. Mal se tinha recomposto, quando o homem o avistou e lhe acenou o punho cerrado.

          Filipe pegou nas suas coisas e desceu. Como lhe fazia falta o conselho de um progenitor!, quando tudo o que as janelas e os quartos lhe albergavam era um psicótico ameaçador e uma pilha de roupa suja, respectivamente.

          Mal saiu da hospedaria, depois de informar o negligente responsável pela recepção, que dormia mais do que vigiava, que não ficaria lá nessa noite, ouviu o homem praguejar ruidosamente do outro lado da rua:

          - Porra, nunca pensei ser deixado à espera por um burro e preguiçoso dum português!

          Recomeçou a andar, impávida e serenamente, enquanto uma janela se abria e lhe rogava que se calasse. Isso fê-lo rir-se, e o homem a partir daí ficou muito melhor disposto. A bem ver, a sua boa disposição foi bem recebida por Filipe, que acolheu os seus insultos de forma muito mais agradável quando eles não o faziam crer que aquele homem o assassinaria durante o sono.

          No sofá do homem, no apartamento bem guarnecido deste, numa zona não muito distante, mas muito mais dispendiosa de Londres, Filipe enrolou-se para dormir. Não sem antes ser ameaçado de tortura e morte dolorosa caso bebesse duma garrafa de whisky que parecia valer o seu peso em ouro, ou comesse dum presunto italiano que o frigorífico albergava. O homem deixou, portanto, subentendido que Filipe podia fazer uso do resto. Ele aguardou até não se ouvir um murmúrio naquela casa, até não ser possível incomodar com o seu movimento qualquer entidade que a ocupasse, e então levantou-se, comeu e bebeu. Com o estômago cheio como há muito não acontecia, e finalmente com um pouco de paz e sossego à sua volta, dormiu o resto da noite, maravilhosamente.

          Naturalmente, foi acordado aos berros. O homem (que até agora permanecia no anonimato, uma vez que Filipe se lembrara da possibilidade de procurar a sua identidade numa gaveta, ou algo assim, mas apenas antes de se deixar distrair com a comida e o descanso), envolvido num roupão com bordados, interpelou-o da seguinte forma:

          - Comeste da minha comida? – Mediante a hesitada confirmação do jovem, continuou. -  E não comeste deste presunto? Mas tu és completamente anormal? Se o meu primo sabe que o cabrão dum convidado em minha casa lhe fez a desfeita de não comer o presunto de excelente qualidade, de Itália, que ele me mandou, vem aqui e mata-o na hora! Come desta porra ao pequeno-almoço, pelo amor de Deus! – Conforme saía da sala com o presunto inteiro seguro como uma moca, quase a arrastar pelo chão, ainda murmurava insultos ao português, e dizia algo indecente sobre bacalhau.

          Filipe levantou-se cuidadosamente. Tinha dormido tão bem que tinha acordado com fome, e de bom grado faria o gosto ao primo do homem desconhecido. Mal se tinha erguido e vestido as calças, quando o homem voltou a entrar:

          - Vou trabalhar. Mas tu livra-te, minha besta… – Tapava os olhos com a mão, enquanto parecia suster o supremo de exasperação que o assolava. Filipe imaginou tudo durante a pausa feita pelo homem. Imaginou que este ia ordenar que o português não se lembrasse de ainda se encontrar na sua casa quando ele regressasse. Imaginou que ele lhe ia ordenar que o jantar estivesse pronto e na mesa quando chegasse. Infelizmente, imaginou até que ele esperasse encontrá-lo nu sobre a sua colcha da cama quando chegasse. No entanto, o homem disse: - Livra-te de quando eu te voltar a perguntar se a nojice do desenho do raio do velho é tua ou não, me responder a medo. Diz-me a verdade! Pensa bem, contorce bem essa noz portuguesa a que chamas cérebro, e diz-me a verdade.

          Sem mais, destapou os olhos conforme se virava, agarrou a chave com a mão esquerda e abriu a porta com a direita. Então, com o roupão sobre o pijama, saiu de casa para trabalhar. Filipe perguntou-se que trabalho teria ele, e temeu que fosse o de assassino profissional, enquanto o imaginava a ser interrogado pela Polícia e a humilhar cada detective que ousasse questioná-lo, até que eles o deixassem ir embora com medo de urinar os lençóis durante a noite por excesso de exposição àquela personagem.

          Filipe acabou de se vestir e comeu. Depois recordou-se que estava sozinho, e tomou banho. Pôs na mochila duas sandes e uma garrafa de sumo e saiu de casa do homem. Deixou lá todas as suas restantes coisas, incluindo o dinheiro. Caminhou durante vinte minutos, até dar de frente com o velho. À luz taciturna do dia do Sul de Inglaterra, era ainda melhor visível como o velho ali desenhado, no muro ocre, se mexia a olhos vistos. Tinha decidido procurar o desenho do velho, e todos os que pudesse encontrar pelo mesmo artista de rua. Desejava estudá-lo. Desejava entendê-lo. Queria muito conhecê-lo. Talvez até sê-lo.

          Notou rapidamente que, irónica ou previsivelmente, o perfil a negro do velho olhava uma árvore, ao longe. Essa árvore encontrava-se ao fundo de um pequeno cemitério antigo. Filipe pensou que ele e o artista seriam bons amigos.

          Depois de interpelar algumas pessoas na rua, conseguiu identificar três outras obras do mesmo artista, no mesmo estilo. Ninguém o sabia identificar, no entanto. Observou atentamente a sua técnica, e não podia deixar de a considerar muito interessante. O artista talentoso que tinha produzido aquelas peças de arte tinha surgido em Londres, pelo menos segundo o que lhe narraram, recentemente. Tinha surgido mais ou menos aquando da sua chegada, nunca antes. Curioso…

          Chegado o final do dia, aproveitou os últimos raios de luz para seguir caminho até ao prédio onde habitava o misterioso homem barbudo. Antes dele chegar, e aproveitando a luz dos reclamos luminosos dum pub que ficava mesmo ao lado da entrada do edifício, começou avidamente a dar uso à caixa de lápis coloridos que acabara de adquirir. Estava sentado na soleira da porta. Tentou reproduzir de memória o velho em movimento, e o esforço saiu-lhe gorado vez após vez. Não viu a figura que, do outro lado da rua, o fitava em perfeita imobilidade e silêncio. Apenas via que o espaçamento entre cada perfil era sempre o errado, e prevenia a transmissão da ideia de movimento. A dignidade da face do homem perdia-se a cada tentativa desesperada. Não tardou a que o velho parecesse gozá-lo, levantar cada vez mais o sobrolho a cada tentativa, esticar os cantos da boca, num sorriso insultuoso, a cada perfil desenhado. Certo é que, mal resolveu desenhar o perfil do homem, sem mais artifícios, lhe trouxe uma dignidade e um charme natural, mas refinado. O velho ganhara novas qualidades, e parecia confrontar a morte mais do que abandonar-se a ela, apesar dela o afectar. Foi esta a pequena vitória de Filipe.

          O homem de barba chegou a casa e, antes do primeiro insulto, deteve-se a olhar para um esboço do mural que tinham visto no dia anterior.

          - És mesmo estúpido! Se ias sair, tinhas-me pedido uma chave, idiota! – Disse o homem barbudo antes de subir as escadas até ao seu segundo andar.

          Conforme Filipe se preparava para o seguir, o vulto do outro lado da rua atravessou-a. Filipe apanhou todos os seus papéis e enfiou-os dentro da mochila à bruta. Ao começar a subir a escada, apercebeu-se que um papel ainda estava no chão, e voltou-se para o apanhar. Um homem, do outro lado da porta envidraçada que o separava da rua olhava para o papel, compenetrada e tristemente. Uma única lágrima parecia pender-se duma sua pálpebra inferior, mas talvez fosse uma sombra. Filipe parou, ao reconhecer o seu pai, mais uma vez. Nunca o tinha visto com tanta nitidez, e nunca vê-lo o entristecera tanto. A desilusão dele só podia significar uma coisa. O pensamento de assumir a responsabilidade pelos graffiti tinha-lhe passado pela cabeça, e talvez fosse a atitude do homem barbudo que determinasse qual a sua resposta. Ele, na noite anterior, tinha sido sincero e ele acusara-o de hesitar. Agora, era o seu pai que o acusava de mentir, ou da intenção de mentir, pelo menos.

          Esta reflexão levou-o a, inconscientemente, descer os dois degraus que o separavam do papel caído, e a recolhê-lo, a escondê-lo envergonhado na mochila. No final desse gesto, voltou a sentir-se só. O homem já não estava do outro lado da vidraça.

          Filipe hesitou acerca do que fazer, tentado a não voltar a dirigir a palavra ao homem que o esperava. Porém, recordou-se atempadamente que tinha tudo em sua casa. Subiu as escadas, decidido a declarar peremptoriamente que aquele trabalho não era seu, e que o seu tinha características que podiam não atingir o nível de inovação do artista de rua, mas o ultrapassam em expressividade artística.

          Deu com a porta aberta, entrou e fechou-a. O homem barbudo fazia o jantar. Dois conjuntos de prato e talheres residiam à mesa, na sala. Agora, o homem já não vestia um roupão sobre o pijama, como quando saíra. Filipe só então reparara na t-shirt preta com o nome duma banda em branco e nas calças de ganga azul escura do homem, bem como nas botas que trazia ao invés dos chinelos de quarto. Roupa, desde já, em tudo idêntica à do dia anterior. A refeição foi simples, e fê-lo lembrar-se da sua mãe, e do período no qual esta apenas cozinhava coisas simples, e se enganava. Afinal, o bife e as batatas fritas eram francamente fracos.

          Quando acabaram de comer, de televisão ligada em todo o tipo de canais, devido ao frenético zapping do homem, este perguntou:

          - Não comes mais, palhaço?

          Filipe acenou com a cabeça que não, e acrescentou:

          - Deixe estar, que eu trato da loiça.

          - Mas tu és deficiente? Achas que eu deixo um porco maltrapilho qualquer mexer na minha máquina de lavar loiça topo de gama? – E procedeu à recolha dos pratos e talheres, que depositou na máquina, de forma surpreendentemente criteriosa.

          Então, voltou a juntar-se a Filipe, e sentou-se à mesa.

          - Só te vou perguntar isto uma vez mais: foste tu o insurrecto indigno que produziu aquela masturbação intelectual que fede no muro que vimos ontem?

          - Não. A minha arte tem um foco muito mais apurado, não me dedico a efeitos visuais com intenção de espectacularidade, quero provocar os sentidos com a expressão de vislumbres da alma.

          Pela primeira vez, o homem barbudo não vociferou:

          - Lamento que não. Por acaso não descobriste quem é o energúmeno? - Mal Filipe abanou a cabeça, prosseguiu, enquanto escrevinhava num papel. – Amanhã vais apresentar-te nesta morada às 9 horas. Dizes que vais lá da parte de Stephen Gritt. E faz-me o raio dum favor: não sejas o monte de fezes que habitualmente és, e finge que essa noz que trazes entre as orelhas trabalha. Além disso, esforça-te por disfarçar que essa patranha ininteligível que cospes pareça inglês.

          Então, levantou-se e fechou-se no quarto, calmamente. Filipe ficou, aparvalhado, a segurar um papel que demoraria horas a decifrar, sem perceber o que tinha acabado de lhe acontecer.



***



          A caligrafia do Stephen Gritt era difícil, mas não impossível de deslindar. Um pouco depois das nove, e já atrapalhado devido ao curto atraso, Filipe saiu do elevador no oitavo andar de um edifício de escritórios. Tinha visto o nome da empresa que ocupava todo esse andar: State of Matter. Não o achava particularmente esclarecedor, e continuava sem saber porque tinha seguido a ordem do insultuoso e arrogante homem barbudo, mesmo depois de saber o nome dele. Afinal, aquele homem continuava a ser tão inacreditável e irrealista no comportamento e nas atitudes como sempre fora.

          Sem saber para qual dos lados do andar caminhar, Filipe deslocou-se instintivamente para o que tinha melhor iluminação natural. As vidraças rodeavam todo o andar, porém um dos lados tinha uma luz directa que lhe dava um outro encanto. Passou as primeiras portas de vidro e deu consigo num corredor amplo e bem iluminado, rodeado do que pareciam ser escritórios albergados por detrás de vidraças opacas. Depois de uns segundos sem que ninguém surgisse, decidiu-se a bater numa das portas de vidro. Do outro lado, uma voz feminina ordenou-lhe atarefada que entrasse. O escritório era dum tamanho médio, apenas cabiam lá dentro a secretária da mulher, a sua cadeira, as duas cadeiras do outro lado da secretária, um pequeno móvel de gavetas ao lado direito da senhora, junto à divisória em vidro opaco, e um outro armário, bastante maior, na parede inversa. Mal ele acabou de observar o espaço e a pessoa que o mandara entrar, essa mesma mulher parou de teclar incessantemente para lhe lançar um penetrante olhar inquisidor. Ele sentiu-se vestido de forma incrivelmente inapropriada para aquele edifício, ao ver o olhar dela desviar-se ligeiramente do seu para o ver de alto a baixo, num gesto imperceptível. Ao sentir que a sua hesitação já se demorava bastante, ele murmurou:

          - Hum, foi o Stephen Gritt quem me mandou.

          Ela olhou-o desinteressada durante uma fracção de segundo, mirou o relógio, levantou-se e contornou tanto a sua secretária como o próprio Filipe, antes de disparar pelo corredor amplo até ao escritório do fundo. Quando finalmente ele conseguiu apanhá-la, a jovem senhora disse:

          - Vai falar com a Laura. Ela é muito ocupada, não desperdice o tempo dela como fez comigo.

          Regressou de imediato ao seu gabinete. Filipe não pôde deixar de reparar como a saia e o blazer do fato cinzento que ela trazia lhe assentavam lindamente, e como andava com uma perfeita eficiência sobre os saltos curtos. Apenas a voz estridente de quem supunha ser Laura interrompeu o vislumbre da jovem a entrar no escritório:

          - Quem é?

          Abriu a porta de rompante, já suficientemente enervado pelo atraso, a incerteza, e o desconcerto deixado pela mulher do fato cinzento. Disse, bruscamente:

          - Stephen Gritt. Ele mandou-me.

          Aquela mulher devia ser intensamente poderosa. Martelava sem perdão nas teclas do computador enquanto segurava o bocal do telefone - esperava que alguém atendesse ou ouvia alguém falar, Filipe não conseguia entender qual das opções -, falava com Filipe e o seu telemóvel vibrava, tudo ao mesmo tempo. Ela, no entanto, parecia estar absolutamente equilibrada e calma. Filipe estava a ser mais afectado pelo caos que a rodeava que ela. Apercebeu-se que só podia estar a falar com a pessoa que estava encarregue de todo aquele piso, provavelmente de toda esta empresa com um nome parvo.

          - Ok. Pode entrar.

          Filipe entrou no escritório e ficou a olhar para a senhora Laura, na sua secretária à direita da porta, amplamente iluminada. Ao contrário do momento no qual a escolha pelo lado mais iluminado do piso foi inconsciente, desta vez Filipe percebeu de imediato como a luz natural incidia precisa e preciosamente sobre a secretária de Laura, como que a sublinhar o brilho da sua função, o seu radioso estatuto. Laura prosseguiu, impávida, com o seu trabalho. Ele perguntou-se se ela receberia de pé todos os que a visitavam, uma vez que não havia cadeira para se sentar. Concluiu que era melhor assim. Como não sabia ao que ia, achava melhor não ter a opção de se sentar, que podia resultar em embaraço. Laura voltou a olhá-lo, como se estivesse habituadíssima ao tipo de estupidez que ele estava a demonstrar, mas não tivesse pinga de paciência para isto de qualquer modo.

          - Disse-lhe que pode entrar.

          Filipe julgava já ter entrado. Pensou, muito brevemente e no mais fundo da sua insegurança, que talvez houvesse um outro obstáculo invisível que melhor definisse aquele espaço de conforto destinado a albergar uma líder daquela envergadura. Apesar de não estar totalmente errado, julgou-se um idiota por não ver nada que o pudesse sugerir em concreto. O seu olhar patético levou Laura a parar de escrever com a mão esquerda, pousar o telefone, continuar a ignorar o telemóvel e levantar-se. Aproximou-se então duma planta que, a meio da parede ao lado da sua secretária, eclipsava parcialmente uma estrutura acinzentada, quase do mesmo tom que a parede de vidro opaco, que albergava uma luz verde e uma outra lâmpada, desligada, de cor avermelhada, além duma simples ranhura. Ela empurrou a “parede”, que agora se evidenciava como porta, em função de ser móvel e de se estabilizar num eixo, mas também pelo facto de ter acesso reservado ao portador do cartão indicado, como demonstrado pela luz verde da estrutura acinzentada. Falou para o interior, e abriu a porta para que Filipe pudesse passar.

          A sensação de espanto do jovem recém-licenciado tinha acabado de se multiplicar exponencialmente. A Laura, a poderosíssima Laura, a grande líder Laura, não passava da secretária do homem por detrás da “parede”. Fazia sentido. Do outro lado a vida era bem melhor. Uma secretária sem confusão albergava um portátil topo de gama de 19 polegadas, além de alguns papéis impecavelmente organizados, duas molduras voltadas para a parede do fundo (esta era mesmo uma parede, aparentemente, apesar de ser evidente que Filipe não podia confiar nos seus sentidos) e um pisa-papéis que, se assim se pode classificar, parecia ser também ele topo de gama. Era bonito e brilhante. Ao lado, encostado à parede, encontrava-se um bem guarnecido mini-bar, que tinha muito pouco de mini, e muito de bar. Dois sofás de pele escuros eram tão convidativos a esta hora da manhã como o sofá de Gritt à noite. Um quadro extraordinariamente simples e complexo em simultâneo pendia na parede à direita de Filipe. A tela branca tinha, perto do seu centro, uma multiplicidade de pontos de diversos tamanhos e de contornos diversamente definidos. As imagens formadas por estes eram difíceis de definir, porque se sobrepunham, mas eram fáceis de adivinhar.

          O homem, no máximo de 40 anos, sorridente, de camisa branca com os dois primeiros botões desabotoados, sem gravata, de calças azuis muito escuras e sapatos pretos pontiagudos aguardava, ao centro do grande escritório, de mãos nos bolsos.

          Filipe entrou, e continuou a olhar o homem. Sentiu um sorriso ridículo, que correspondia ao sorriso do homem, desfigurar o seu rosto. Apercebeu-se que o senhor não tinha desfeito a barba nesta manhã, mesmo quando este lhe estendia vigorosamente a mão. Sentiu-se agarrá-la e, de imediato, olhou para baixo, para as mãos entrelaçadas. A suavidade daquela palma tinha sido estremecedora, e Filipe não podia deixar de a estranhar e tentar recordar uma palma da mão tão cuidada como esta que agora acolhia.



***



          Sentados frente a frente nos extraordinariamente confortáveis sofás de pele, Filipe continuava sem perceber o porquê de ali estar, apesar de ter sido tão bem recebido pelo senhor John Ardennes, que tinha acabado de se apresentar e parecia agora aguardar pela apresentação de Filipe.

          - Sou Filipe Carvalho, sou português.

          - Filipe Carvalho! – Pronunciou mal o primeiro nome, mas sobretudo o apelido. - Muito bem! O que é que faz o Filipe Carvalho?

          - Tenho uma licenciatura em Belas Artes, e estou desempregado.

          - O que fazes artisticamente, Filipe Carvalho?

          - Desenho. – Filipe vasculhou pela mochila até encontrar um desenho que achasse razoável, e apresentou-o ao Administrador Executivo, ou CEO (chief executive officer), da State of Matter. Ele olhou-o de relance, breve mas interessadamente, e devolveu-lho, sempre com um sorriso pleno de validação. Enquanto Filipe o devolvia à mochila, Ardennes disse:

          - Muito interessante! – A sua atitude, então, mudou, e tornou-se intensamente profissional. – Filipe Carvalho, nós somos uma empresa ainda jovem, que há pouco tempo deu o salto. Além da empresa ser jovem, nós apostamos em trabalhar com jovens talentosos, porque temos sempre a ganhar. Se ficam connosco, crescem e desenvolvem o nosso trabalho; se saírem, projectam a sua imagem e, em consequência, a nossa. Peço-te que me acompanhes para te mostrar as nossas instalações.

          Saíram então do escritório, e passaram por Laura, a quem Ardennes pareceu ter acenado algum código gestual secreto complexo que ela assimilou de imediato, ao continuar a trabalhar sem hesitação. Passaram para o corredor amplo, ladeado de diversos escritórios como o que conhecera, o da jovem de cinzento. John disse-lhe:

          - Aqui é onde trabalha o staff jurídico e que procura e negoceia as oportunidades mais vantajosas. O pessoal que trabalha demais e faz o trabalho chato! – Sorriu, e apontou para si mesmo com um polegar. Então abriu-lhe a porta do escritório do fundo, à direita, contrário ao escritório da mulher de cinzento. Enquanto Filipe se apercebia que, por detrás daquela porta não se escondia um dos outros escritórios, mas uma passagem, Ardennes disse:

          - Vamos agora entrar onde tu vais trabalhar.

          “Ai vou?”, pensou Filipe enquanto passavam por dois armários de grande envergadura, como o que ficava na parede do fundo do escritório da jovem que conhecera. Ainda não tinha dito mais de dez palavras no interior daquele edifício, não fazia a menor ideia do que se fazia neste andar, nesta State of Matter, e já lhe estava a ser oferecido, ou imposto, um emprego. Até na ausência, Stephen Gritt conseguia perturbá-lo. John abriu a porta do outro lado do curto escritório, e a barulheira que uma enorme cambada de jovens da idade, ou pouco mais velhos, que Filipe fazia cessou. Olharam seriamente para John e Filipe, até que o primeiro sorriu, e disse:

          - Nova aquisição, malta!

          Todos bateram palmas e, embora controladamente, foram retomando a barulheira divertida em que o seu trabalho aparentemente consistia. Pela primeira vez desde que entrara nesta ala do piso da State of Matter, Filipe não se sentia mal vestido demais para estar ali. Todos os seus novos colegas de trabalho (quão estranho era para ele pensar nessa hipótese, quando tinha assumido que Stephen o mandara aqui para lhe fazer um recado) se vestiam de uma forma casual, com as liberdades que lhes aprouvesse. Talvez Stephen tivesse vindo para aqui de roupão, na manhã anterior.

          Andavam agora por entre os diversos computadores, com os ecrãs inundados pela mais completa diversidade de áreas e temas. Os trabalhadores cumprimentavam ou davam palmadas nas costas a John Ardennes, conforme este passava. John explicou-lhe:

          - São estas pessoas que, tal como tu vais fazer, organizam os nossos volumes: começam por escolher o que querem publicar, e montam o volume e os seus conteúdos posteriormente. Claro que entre um ponto e o outro é preciso o nosso corredor, a parte jurídica, aceitar e negociar as partes aborrecidas, os contratos, as licenças, os pagamentos. Mas isso costuma ser fácil. Nós tentamos dar espaço para que vós, que sois uma amostra do nosso público-alvo e os nossos especialistas, decidis o melhor para os nossos livros. E é assim que se fazem os melhores livros sobre arte, com as melhores ilustrações, que tens no mercado nos últimos sete anos! Não te vou pôr num projecto sozinho já, claro. Terás que seleccionar um tema e fazer uma exposição da pesquisa que fizeres ao nosso corredor, já com a orgânica do livro estruturada. Depois nós contactamos os artistas para acertar tudo e vocês montam o projecto final. Vou já pôr também alguns colegas do meu corredor a estudar a viabilidade de publicar em português algumas obras. Estás a perceber tudo?

          Filipe não entendia nada. Era suposto que ele fosse capaz de editar livros sobre arte? Era suposto que ele escolhesse temas e estruturasse índices, para mais tarde compor um livro inteiro sobre um artista, ou uma forma de arte? Aparentemente, sim. E ele, pelo menos de momento, não estava disposto a contrariar o Senhor Ardennes. Acenou, portanto, com a cabeça. John continuou:

          - Entre os teus colegas, que são uma equipa muito unida e de alta competência, temos fotógrafos, pintores, desenhistas, cartoonistas, escultores, “antigos” artistas de rua – já que supostamente, não podemos admitir que eles trabalhem cá e danifiquem propriedade pública ou alheia -, encenadores, realizadores, todo o tipo de produtores culturais e artísticos, e mesmo algumas pessoas da área das ciências. Também fazemos uns livros esquisitos que exploram graficamente as maravilhas da ciência e da natureza, nada de mais! – Piscou o olho à sala, e muitos se riram, enquanto um ou dois soltaram uns sons irónicos, de protesto. Vais-te sentir em casa, nas dez horas por dia que vais passar aqui!

           - Acredito que sim! – Deu por si Filipe a dizer, enquanto olhava para os colegas. Indo já em direcção à porta da sala ampla, com cerca de trinta secretárias interligadas e sem separações físicas entre elas, lindamente iluminada com luz natural, John despediu-se:

          - Vou-te deixar. Não trabalhes hoje, observa como tudo funciona e vai para casa cedo. Amanhã está aqui às nove da manhã, sem falta. Mando alguém vir aqui falar contigo entretanto, para tratar das burocracias. Adeus!

          Filipe estava abalado pela estranheza de toda aquela situação. Estava incrédulo, e só pensava numa coisa, que balbuciou a medo, depois dum momento de hesitação:

          - Só uma pergunta: Stephen trabalha aqui?

          Depois de perscrutar Filipe atentamente por um segundo, de sobrolho contraído, John riu-se à gargalhada, enquanto alguns dos seus novos colegas se lhe juntavam, para quebrar o silêncio que a pergunta tinha gerado. Depois, respondeu, sonoramente:

          - Obviamente, não!



***



          Sentindo-se embasbacado, patético e um pouco humilhado, bem como o maior sortudo de sempre, Filipe estava de pé, imóvel, no meio daquela sala. Estava já a ser, aparentemente, ignorado pelos restantes. Porém, mal se sentiu com necessidade de entender o que se passava, uma voz ao seu lado perguntou:

          - Estavas a falar de Gritt, certo?

          - Sim. – O jovem sorriu. – Porquê? Tu conhece-lo?

          - Todos nós sabemos quem é o Gritt. Não estás aqui há muito tempo, certo?

          - Não… Importas-te de me dizer quem ele é?

          - O Gritt é um dos maiores críticos de arte de Londres. Ele trabalha no London Herald, e escreve a coluna de arte deles, além de coordenar toda a secção de arte do jornal. Foi ele quem pôs a maioria de nós aqui.

          - Hum, muito bem! – Filipe deixou de se sentir tão especial pela recomendação. – Tens um minuto para me explicar como é que isto funciona?

          - A ideia desta empresa é simples: se tu dás às pessoas aquilo que elas querem, elas vão pagar bem por isso. Nós percebemos do que estamos a fazer, dão-nos liberdade para escolher temas e abordagens, e põem-nos a trabalhar para dinamizar as colecções da editora. Tu vais começar a ganhar sessenta porcento do meu salário, durante três meses. Se ficares, vais ganhar o mesmo que eu. Recebemos todos o mesmo, e recebemos aumentos em conjunto. Se alguém não está a cumprir de todo, é despedido. De resto, aqui na sala vais trabalhar tanto quanto os outros, porque o pessoal não te vai deixar agir doutro modo e safares-te a ganhar o mesmo que quem trabalha. Quando atingirmos os objectivos, ganhamos mais. Não te parece bem?

          - Sim, acho que sim, na teoria…

          - Espera para ver! Já agora, eu sou o Antony.

          Depois de se cumprimentarem, Filipe decidiu que sim, seria bom ver como aquilo funcionava. Estava muito céptico em relação a como aquela empresa poderia produzir qualquer género de dividendo, mas ele não fazia parte do “corredor”, fazia parte da “sala”. Dois mundos tão diferentes, mas tão complementares. Ele nem acreditava que, após trinta minutos neste piso, já estava empregue ali, no mesmo local que o CEO sem gravata e bem-disposto e que a mal-encarada jovem do fato cinzento. Laura continuava a deixá-lo tonto, só de pensar na sua carga de trabalho, e estava muito mais feliz por ir parar àquela sala. Viu Antony trabalhar durante alguns instantes, e percebeu que o seu livro era sobre fotografia a preto e branco de paisagens urbanas aparentemente desérticas. Depois, ao aperceber-se que os novos colegas em nada se preocupavam que ele espiasse o seu trabalho e lhes colocasse questões, observou um pouco a pesquisa dum colega sobre cartoons de cariz político e social, e o resultado final digital de um livro sobre a comparação entre escultura em granito e em mármore, através da análise de três escultores clássicos. Pouco percebia daquelas temáticas, mas os colegas pareciam genuinamente interessados em produzir um trabalho de qualidade e em participar do sucesso da equipa que os rodeava e da empresa que os unia.

          Só muito mais tarde foi para a casa do Stephen Gritt, e desta vez não o fez só porque tinha lá todas as suas posses. Encostou-se à porta de entrada e esperou pouco para ser insultado pelo homem barbudo, que o voltou a acusar de crimes inimagináveis contra a humanidade por lhe não ter pedido uma chave do apartamento. Apesar da vontade ter esmorecido em função deste tratamento, Filipe agradeceu imenso a Gritt pela oportunidade de trabalhar naquele local. Gritt insultou-o. Depois disso, passou a explicar-lhe qual a comissão que Filipe teria de lhe pagar. Como ele acreditasse em si, o homem barbudo achincalhou-o pela sua ingenuidade e assegurou-lhe que o dinheiro de Filipe era menos que papel higiénico, que não lhe serviria para forrar a caixa da areia do gato, se ele tivesse um.

          A noite foi tranquila, e os insultos de Stephen tornavam-se cada vez mais bem recebidos por Filipe, que tinha aproveitado para começar a ler algum do não menos insultuoso trabalho do homem barbudo na sua coluna do London Herald. Era refrescante que os insultos deles se dirigissem à arte de outros, em vez de a ele.

          De manhã já estava na secretária livre da sala iluminada ainda antes das oito e trinta. Estava ainda só na sala quando a jovem senhora do fato cinzento deu entrada, com vários papéis na mão e um ar profissional, impecavelmente vestida num fato preto, com calças ao invés de saia. Ele mirou-a atentamente conforme ela se desviava das várias secretárias e percorria a distância que separava a ponta da sala onde Filipe estava e a entrada. Chegada ao pé dele, e de ar desagradado, sentou-se sem dizer uma palavra, e assinalou com uma esferográfica onde ele devia assinar.

          Filipe sorriu, e disse:

          - Terás de ser mais paciente. Não assino nada sem saber as condições.

          - Isto, tal como informa em menos de dez palavras no cabeçalho, é o formulário do seguro. Ter seguro não costuma ser algo particularmente questionado nestas negociações.

          - Vamos começar do início. Como te chamas?

          - Sophie Castro. Podes assinar, agora?

          Filipe ficou evidentemente surpreendido com o apelido da jovem, e retorquiu, sorridente:

          - Castro?

          - Não!, se vais fazer a piada do Fidel Castro, poupa-me. Não sou cubana, sou filha de um português, e é só. Podemos continuar?

          Filipe não queria saber se ela continuava a usar o mesmo tom de impaciência e desprezo, estava determinado a agarrar, ainda que momentaneamente, esta inesperada proximidade, ainda que muito relativa, à sua terra.

          - Não estás a entender, eu chamo-me Filipe Carvalho. – Apontou para o formulário do seguro e aguardou uma faúlha de entendimento nos olhos de Sophie. Como ela não entendeu, continuou. – Eu sou português. Somos ambos portugueses!

          Sophie não tinha ainda olhado devidamente para os papéis que carregara até ali, e tinha dificuldade em perceber pelo nome a nacionalidade duma pessoa. Justificou-se assim, de forma mais leve e simpática:

          - De facto tenho nacionalidade portuguesa, mas não tenho muito conhecimento da língua, e não tinha olhado com atenção para o nome. Peço desculpa, Filipe. – Ao contrário do chefe de ambos, John Ardennes, Sophie pronunciara bem a palavra.

          - Não faz mal! Já agora, Sophie, como é que vocês souberam os meus dados todos? Não dei qualquer documento a ninguém.

          - Laura conseguiu-os. John deve ter-lhos pedido.

          Filipe, enquanto assinava os papéis na companhia daquela jovem que, de todas as ascendências possíveis, partilhava a portuguesa com ele, recordou-se de como John repetira várias vezes o seu nome, e da sinalética trocada entre ele e Laura quando saíram do seu gabinete, e entendeu que fora logo a partir de então conduzida a verificação do seu estado jurisdicional britânico e da sua identidade. Como é óbvio, e apesar de se surpreender com os métodos empregues, Filipe pensou que já era tempo daquela empresa apresentar algum defeito. Minutos depois, ao ver a quanto correspondiam os sessenta porcento do salário de Antony, e de todos os restantes, que receberia nos primeiros três meses, esqueceu de imediato o defeito apontado, e decidiu dedicar-se a valorizar as qualidades do seu novo local de trabalho. A companhia de Sophie, claro, ajudou nessa decisão.



***



          O aparecimento de Gritt na sua vida tinha tido efeitos surpreendentes, não haja dúvida. Filipe muito rapidamente se achou numa posição diferente na vida. A sua decisão de não mentir a Gritt na sua primeira interacção, nem mais tarde, no vão das suas escadas, muito por mérito da aparição da estranha figura do seu pai, foi também decisiva. Portanto, toda a sorte que tinha tido ao estabilizar-se em Londres se devia a esses dois homens, igualmente pouco comunicativos, estranhos e distantes, apesar de apenas um deles poder ser, em definitivo, um mero fruto da sua imaginação.

          A sorte que eles lhe tinham trazido expressava-se em várias formas. A estadia profissional na State of Matter mostrava-se recompensadora. Filipe expressava finalmente o seu interesse nas mais diversas formas de arte, educava-se acerca delas, e tinha o privilégio de seleccionar os artistas e de definir o texto que acompanhava as amostras fotográficas da sua obra num livro de excelente qualidade. Adaptou-se perfeitamente ao estilo de trabalho necessário, e rapidamente se acomodou ao estilo de vida resultante. Não demorou muito a deixar de dormir no sofá de Gritt.

          Na empresa sentia-se apreciado, e sentia que a sua contribuição era livre, uma vez que a política da casa era a de confiar nos especialistas. Não se importava com as excessivas horas semanais que dedicava àquele trabalho, uma vez que, na maioria das obrigações, se entretinha imenso. Apesar disso, nos primeiros tempos não conseguia conciliar a sua arte com o muito que fazia, o que lhe custou. Com o passar das semanas, chegou a um ponto de equilíbrio que o fazia sentir ser possível fazer tudo, na medida correcta.

          Sophie ocupava-lhe muito tempo. Inicialmente, apenas tempo de reflexão, de inevitável recaída em memórias de expressões preciosas, de olhares que tinham tanto de inocente como de magnético. As desculpas para ver Sophie nunca eram suficientes, mas quando as havia, não eram de modo algum desperdiçadas. Todos os assuntos legais passavam por ela, todos os acertos relacionados com os artistas envolvidos nos projectos coordenados por Filipe, ou que recebiam o seu contributo, motivavam uma visita ao seu escritório. O facto de ser mesmo do lado oposto à porta que levava à sala dos editores era só uma agradável desculpa a ser usada e abusada.

          A reacção de Sophie começou por ser algo insípida. Parecia não notar ou não se importar com o comportamento de Filipe face a ela. O seu período de adaptação àquele escritório também não era alheio à sua atitude. Também ela, Sophie, tinha começado a trabalhar na State of Matter havia pouco tempo, e o seu trabalho era um pouco mais desgastante e um pouco menos distractivo que o de Filipe. A sua distância e a sua atitude brusca e impaciente deviam-se a isso. Ele não o sabia, e decidiu que insistiria em procurar o contacto com ela, até ela ser directa com ele e dizer o que a perturbava.

          Com o passar do tempo, Sophie ambientou-se às suas funções e àquele local de trabalho, e retomou o trato cordial com Filipe. Recebia-o com um sorriso, tratava-o com amabilidade e com o que parecia ser interesse. Finalmente, foi ela quem tomou a iniciativa de o convidar para se encontrarem fora do horário de trabalho, o que deixou Filipe fora de si.

          A chuva miudinha, como seria de esperar, não afastou qualquer deles do encontro. Anoitecera há uma hora, ou pouco mais, quando Sophie entrou no café onde tinham ficado de se encontrar. Um Filipe ansioso e de nó no estômago olhava pela janela, distraidamente, da forma que queria ser encontrado por ela. Porém, não conseguia resistir a, de dez em dez segundos, espreitar para a porta. Perante a entrada de Sophie, olhou para a porta e constatou tratar-se dela, muito rapidamente antes que ela o mirasse. Retomou o seu olhar distraído para um cão molhado que passava e cheirava o chão, não sem reflectir sobre a expressão algo pesarosa que parecia assomar a fronte e os lindos traços de Sophie.

          Sophie, depois de abandonar o guarda-chuva à entrada e remover a gabardine, sentou-se à sua frente, sem o cumprimentar efusivamente, como ele desejava. Passou, de imediato, à conversa:

          - Filipe, eu gostava de saber porque me visitas no meu escritório todos os dias, com ou sem razão?

          Filipe foi apanhado de surpresa por aquela questão e percebeu de imediato que todas as suas expectativas para aquele encontro sairiam goradas. Não sabia o que lhe responder, sentia-se em julgamento, apanhado sem álibi.

          - Não podes interessar-te por alguém do teu local de trabalho, normalmente resulta num ou nos dois perderem o emprego. Não posso arriscar isso, de momento. Trabalhei muito para conseguir o meu lugar, e não estou numa posição que me permita perdê-lo agora. – Sophie, que até agora olhara para ele, normalmente, desviou o olhar para as mãos, que se entretinham a segurar um menu do estabelecimento. – Talvez seja melhor que evitasses tratar dos teus assuntos comigo, a partir de agora, pelo menos durante uns tempos.

          Depois de devolver ao olhar a direcção dos olhos de Filipe, que continuava calado, Sophie recolheu da cadeira ao seu lado a gabardine e levantou-se para sair. Filipe hesitou por momentos em interrompê-la e argumentar com ela, tentar fazê-la ver o seu lado e quiçá trazê-la para lá também, mas foi cedo que se apercebeu que isso estava feito. Enquanto ela saía do café sem o guarda-chuva que tinha trazido, ele recordava as palavras dela, e lembrava que em ponto algum ela tinha denotado repulsa pessoal com a situação que descrevera. Não se opunha, pessoalmente, a qualquer avanço dele. Apenas profissionalmente tinha um impedimento aparentemente inultrapassável. Com um sorriso matreiro, Filipe pagou. Ao sair, não esqueceu o guarda-chuva. Não estava a chover, agora, mas algo o fez lembrar-se dele. Particularmente, o facto de não lhe pertencer, mas ter permanecido por períodos prolongados na mão de Sophie, despertou a necessidade de o colher do caixote.



***



          Na manhã seguinte, Filipe bateu ao de leve no gabinete de Laura, a antecâmara do gabinete de John Ardennes, o seu CEO. Laura recebeu-o e deu-lhe ordem de entrada à sala do administrador, cuja porta ele agora identificava facilmente ao lado da luz verde, no identificador de cartões que se encontrava na parede.

          John recebeu-o com um sorriso profissional e perguntou-lhe de que se tratava, enquanto o convidava a sentar num dos almofadados e suaves assentos de pele do sofá escuro.

          - Suponhamos, John, que um funcionário desta empresa estava interessado numa funcionária, e dela parecia haver uma resposta positiva. Qual é a política da empresa face a um desenvolvimento, - hipotético, é claro -, do seu relacionamento?

          - Filipe, Filipe! Não há qualquer problema com o relacionamento! A empresa pede apenas que evitem o contacto profissional, sempre que possível. Sabes como são as pessoas; não queremos ouvir rumores desagradáveis, nem causar situações embaraçosas…

          - Ah, óptimo! De acordo, então, John, obrigado.

          - Devo acrescentar que, mal o relacionamento termine, podem surgir situações difíceis de gerir enquanto mantemos um ambiente profissional. Isso pode acabar por resultar na demissão de um, ou ambos os funcionários. Muita atenção a isso, é responsabilidade dos envolvidos.

          Filipe anuiu e ergueu-se. John acompanhou-o até à porta do seu gabinete e, antes de a abrirem, respirou fundo, colocou uma mão sobre o ombro de Filipe, e falou baixinho, e embaraçadamente:

          - É muito comum as pessoas confundirem os bons modos e a simpatia da Laura com interesse da parte dela. As pessoas acham a confiança e a competência dela irresistível, e acabam por se dar mal. Não quero que te desiludas, é muito provável que não seja esse o caso… Faço-me entender?

          Filipe manteve-se inexpressivo, demonstrando uma pitada de tristeza e um nadinha de desilusão, mas acenou com a cabeça. John deu-lhe uma palmada empática nas costas, enquanto lhe abria a porta, que fechou de imediato após a sua saída. Filipe não pôde deixar de ficar satisfeito por constatar que o patrão não desconfiava do seu interesse em Sophie, já que a sua discrição e privacidade manter-se-iam no seio da State of Matter.

          Laura continuava, como de costume, extraordinariamente atarefada, na sua aparentemente sensual relação com os diversos aparelhos electrónicos e com os visitantes que, como ele, passavam por ali para se encontrarem com Ardennes. Filipe não conseguiu resistir à brincadeira, e piscou-lhe o olho. Mediante o seu ar de repulsa, com um ombro a segurar o auscultador do telefone, uma mão no moderno teclado do computador, e a outra a ostentar um telemóvel topo de gama, Filipe sorriu ampla e divertidamente.

          Percorreu o corredor e entrou no escritório que servia de antecâmara à sala dos editores, não sem antes vislumbrar atentamente a porta do escritório de Sophie. Chegado à sala, pegou no guarda-chuva de Sophie junto da sua secretária e pediu a Antony que lho entregasse. Ia respeitar o desejo de Sophie, e evitá-la profissionalmente. Trataria dos seus assuntos legais e burocráticos com outra pessoa, não se cruzariam no oitavo andar, o piso da empresa, tão cedo.

          Nada os impedia, ainda assim, de se cruzarem no rés-do-chão, já no exterior do edifício. Assim, ao sair do trabalho, Filipe desceu normalmente no elevador, passou a segurança do edifício e saiu, calmamente. Depois refugiou-se perto da entrada de outro dos edifícios de escritórios que rodeavam o seu e esperou, pacientemente. Vinte minutos depois, e com um ar cansado e atarefado, Sophie saiu do edifício. Quando viu Filipe a aproximar-se, não conteve alguma aflição, antevendo que a conversa do dia anterior, apesar da aparência de sucesso demonstrada pela entrega do guarda-chuva ter ficado a cargo de Antony, não tinha resultado.

          - Não te preocupes, não te vou incomodar mais no emprego. Aliás, não te incomodo mais de todo, basta que mo digas. Só gostava que soubesses que falei com o John Ardennes e ele diz que a empresa permite que os funcionários tenham vidas em comum fora do trabalho, desde que evitem encontrar-se lá dentro mais do que o necessário. – Algum alívio transpareceu na face de Sophie. Filipe sorriu. – Finalmente Laura e eu teremos o futuro de amor que merecemos!

          A cara de Sophie manteve-se serena, mas perdeu toda a indicação de alívio, atingindo gradualmente uma contorção de embaraço contido. Filipe riu-se.

          - Ah, não sabia que tinhas interesse nela. Desculpa se ontem pareci arrogante, só nos queria evitar…

          - Estou só a brincar, era uma piada! Esquece…

          Sophie devolveu o sorriso a Filipe, não porque tivesse entendido a referência, mas porque voltava a sentir-se aliviada. Então, disse:

          - Não queres aproveitar para me explicar isso, enquanto tomamos um café? Parece-me que te estou a dever uma conversa normal. Estás interessado?

          Filipe agarrou-lhe a pesada mala de documentos e pôs o seu braço direito à disposição dela. Foi de braço dado que ambos se dirigiram a um café em tudo idêntico ao do dia anterior, mas que parecia a ambos muito mais leve, mais colorido, com cheiros mais vivos e pessoas mais sorridentes, que lhes deixou o coração preenchido e deu significado aos momentos que aí passaram. Tudo porque, finalmente, se sentiam desimpedidos para poderem, ao seu ritmo, conhecer-se.

          No primeiro de muitos encontros, e mediante o reconhecimento da série de contrastes que este encontro e o anterior encerravam, Filipe reflectiu sobre a figura misteriosa e a ausência da sua intervenção na resolução deste imbróglio. Não tinha precisado dele, do seu pai, para conseguir finalmente ter uma oportunidade com a encantadora filha dum português, que o fazia aceitar Londres como uma cidade que pudesse ter como sua casa.

          Como era recorrente, se por um lado ficou grato com ausência do homem, que o teria levado a questionar a sua sanidade uma vez mais, por outro sentiu saudades da sua esclarecedora intervenção, que teria dado um peso forte à sua opção e ao sentimento que o invadia ao rir-se animadamente com Sophie, naquele fim de tarde escuro no qual ela parecia brilhar, só para si.



***



          Filipe não via o seu pai há muito tempo. A figura abandonara-o. Nem na sua arte figurava com a mesma frequência. O homem não aparecia em Portugal. Sophie acompanhava-o e estava lá. Ele não se fazia notar no seu apartamento londrino. Já Sophie, estava lá muitas vezes. O seu pai não aparecia reflectido nas vidraças do edifício onde trabalhava, enquanto o reflexo da agradável presença de Sophie era constante. Ele não aparecia de rompante no metropolitano quando Filipe viajava para casa, por entre a populaça, mas Sophie aparecia sempre, fosse em pessoa ou através de um telefonema dedicado.

          A saudade que Filipe sentia daquela figura e do seu conselho era abafada pelo amor que sentia por Sophie, que crescia a par do seu apreço pelo seu trabalho e da sua amizade com os seus colegas e, espantosamente, com Stephen Gritt, com quem conversava por vezes.

          O homem não aparecia, nem em sonhos, mas não abandonava a cabeça de Filipe, que procurava orgulhá-lo e deixar que a sua ausência se devesse, sobretudo, ao acerto da vida de Filipe, à sua excelente adaptação a Inglaterra, a tudo fluir com a maior naturalidade e a maior satisfação.

          Os desenhos de Filipe melhoravam conforme o seu contacto com outras abordagens artísticas, promovido pelo seu trabalho, lhe ia abrindo os horizontes. O seu estilo não mudara, mas a sua paleta emocional e temática era agora mais extensa, o seu traço tornara-se mais abrangente e só o regresso da figura que uma noite o visitara, protagonizado pelo seu lápis ou pela sua caneta, permitia ao seu trabalho mais tradicional voltar a surgir, e insurgir-se contra a mudança, mantendo-se genuíno.

          O seu contacto constante com artistas e com coleccionadores ou curadores de arte, mais uma vez facultado pelo seu trabalho, permitiam-lhe não só que regressasse aos tempos do Ensino Secundário e Superior, nos quais convivia com aqueles que eram os seus pares, mas também a promoção do seu trabalho. Expor tornou-se crescentemente comum, e mesmo vender se tornou esporádico. Dentro do meio artístico obtivera já reconhecimento e algum apreço.

          A primeira grande exposição que protagonizou mereceu da sua parte um raro empreendimento: decidiu fazer um retrato de corpo inteiro de um homem na soleira de uma porta. O homem mirava o chão, atentamente, compenetrado, intenso, repleto duma emoção triste e de origem indizível. Por detrás, os reflexos da cidade no chão húmido faziam sobressair a figura, seca, austera, pesarosa do homem. Ao seu lado, a porta aberta reflectia-o. Aí, a sua face não olhava o chão pesadamente. Pelo contrário, o seu reflexo olhava quem apreciasse o quadro nos olhos, ternamente, com uma profundo ar de desilusão que se fazia sentir mais pela lágrima que ameaçava escorrer pela sua face, partindo do olho esquerdo.

          Essa imagem recebia o visitante da galeria, mal ele entrava nos corredores da exposição do artista Filipe Carvalho. Captava a atenção de tal maneira, que não eram raras as vezes nas quais as pessoas se amontoavam naquele entroncamento no qual todos, antes de escolher enveredar por um lado ou o outro, davam de caras com o homem que seriamente julgava algo que eles gostariam de poder deitar fora, deixar no chão, ao olhar para esse pedaço de vida que simultaneamente os julgava como alguém que os amava, mas lhes rogava maior critério, maior cuidado, maior empenho.

          Era essa a única figura do pai que expôs nessa ocasião, e não a colocou à venda. A opção, inicialmente criticada, foi depois fortemente aplaudida por todos os amigos de Filipe que tinham um pé no mundo da arte. Afinal, ele multiplicara o valor do desenho ao não o disponibilizar, e fizera o seu nome ressoar por Londres durante dias, conforme uma série de coleccionadores de arte contemporânea faziam fila para se apaixonar pela obra e ter uma oportunidade de dizer nos olhos ao artista qual o tamanho da fortuna que estavam preparados para gastar para a ter.

          Um leiloeiro seu amigo ofereceu-se então para proceder com o leilão da obra e Filipe, simultaneamente tentado pela possibilidade de ganhar muito dinheiro e muito reconhecimento, aceitou.

          Com a quantia averbada, Filipe e Sophie poderiam viver modestamente sem trabalhar um único dia mais nas suas vidas, e Filipe não pôde acreditar na valorização que tinha atingido enquanto artista. Finalmente podia dar-se ao luxo duma extravagância que imaginara tardasse imenso. Tinha já pensado na possibilidade, e faltara-lhe um sinal. Talvez inocentemente esperasse uma indicação favorável do pai. Talvez se sentisse mais seguro se este lhe aparecesse, mas estava cada vez mais certo que Sophie ocupara o seu lugar na sua vida, e precisava então de um sinal diferente. Foi então que a venda do quadro do pai, que representava a sua mais recente aparição, serviu de alegoria perfeita para a transição na sua vida: o abandono do pai não acontecera apenas na realidade, mas também simbolicamente. Se a figura não se fazia notar, nem tão-pouco a sua reprodução artística continuava na vida de Filipe. Se o seu desaparecimento resultava na entrada na State of Matter e na entrada de Sophie na sua vida, o desaparecimento da expressão em papel desse momento resultara na entrada duma absurdamente encantadora quantidade de dinheiro na sua conta.

          Agora teria dinheiro para uma casa, se o desejasse. Teria dinheiro para carros topo de gama, se os quisessem. Poderia pagar aos filhos que viesse a ter tudo o que eles pedissem e, sobretudo, a melhor educação. Era até capaz de abrir o seu próprio negócio, ou de dedicar-se à sua arte em pleno. Decidiu que o melhor seria começar por cumprir a primeira extravagância que imaginava teria dificuldade em pagar. Pediria Sophie em casamento, e daria à sua amada todo o encanto e todo o luxo que ela quisesse para marcar esse dia.

          Ela aceitou.



***



          O casamento de Filipe e Sophie foi de facto muito belo. Ambos sonharam com a beleza da catedral, e encantaram-se com a beleza no olhar um do outro. Ambos procuraram a riqueza da excelente culinária, e encontraram o aveludado da mão um do outro. Ambos esperaram o aprumo dos serventes, e embeveceram-se com a companhia dos amigos e familiares amados. Ambos envidaram por trazer nos convidados o assombro pela qualidade e quantidade dos preparos, e se surpreenderam por vê-los derreterem-se com a qualidade e quantidade do amor que partilhavam. Ambos ansiaram pela despreocupação da ausência de dívidas que resultaria do dia, e maravilharam-se antes com a felicidade que obtiveram juntos. Se era o luxo a que almejavam, nem por ele notaram, quando as coisas menores subiram ao centro da vida, e se tornaram o que verdadeiramente são: as mais importantes.

          Se Sophie subia na empresa, Filipe ganhava estatuto e atenção como artista. Conduziam a vida profissional em Londres e, quando abdicavam de passeios mais requintados, entretinham-se a visitar Portugal, e Andreia, a mãe de Filipe.

          Sophie agora atingia, profissionalmente, o que Filipe alcançara cedo. Ela agora também estava realizada no seu trabalho, na empresa que Filipe abandonava para perseguir a carreira almejada. Não sem antes dar o devido crédito a Stephen Gritt, que muito o insultou pelo seu casamento, que muito praguejou com o seu abandono da empresa, mas continuou – porque, sim!, já o era – a ser um dos maiores apreciadores do trabalho de Filipe, e a promovê-lo, entre injúrias, enquanto tal.

          Todas estas benesses surgiram sem que Filipe pusesse a vista no pai, naquele vulto, naquela figura. Ao contrário do que fizera com Gabriela, Filipe contou a Sophie o que vivenciara nessas situações, nas visitas do que supunha ser a sombra terrena do pai que o deixara em miúdo. Sophie aceitou a sua verdade, e apenas lhe pediu que lhe agradecesse, se o visse, pelo filho que trouxera ao mundo e educara. De resto, preferia esquecer o assunto. Tal como Filipe, era uma céptica nestes assuntos. E, se ao contrário dele, não achava que o surgimento do homem fosse uma expressão de loucura, uma alucinação demente, era sua opção não tentar interpretar em excesso essas memórias, cuja distância temporal a reconfortava.

          Com naturalidade, após três anos e alguns meses de tentativas, Sophie acolheu o fruto do amor de ambos no seu ventre. As carícias que trocavam nessa fase não podiam ser mais ternas e dedicadas, e apenas aí tomaram a opção de pausar um pouco as suas vidas voltadas para as carreiras que escalavam em responsabilidade e reconhecimento.

          O período no qual aguardavam o nascimento da filha foi difícil para Filipe. Não porque tivesse diminuído muito o ritmo de trabalho. Não porque a esposa lhe trouxesse problemas. Não porque a saúde de mãe ou filha não se mantivessem ideais. Apenas porque o alvoroçava a ausência permanente do seu pai, que voltava a dar-se por tanto tempo que a figura já surgia agora, várias vezes, apenas por teimosia da imaginação de Filipe, que insistia em projectá-lo em casacos pendurados em cabides, em reflexos luminosos do tráfego, em cartazes de concertos colados a muros, em reflexos de árvores nas poças de água.

          Assomavam-no, por vezes, sentimentos de abandono, solidão, perplexão, ou ansiedade. Cada vez menos racional, só encontrou descanso quando voltou a desenhar aquele que só ele vira em muitos anos. Desenhou-o a segurar com um braço a cabeça inerte de um cão gravemente ferido, enquanto se ajoelhava sobre ele. Inclinado para baixo, olhava o desenhista, inicialmente, mas cedo passou a olhar o coleccionador que tanto pagou pela obra. Desenhou-o apenas sentado, como que ocioso, sem nada que o preocupasse, com uma taça de chá na mesa dum café que ocupava. Olhava para longe, de perfil, ensaiava já um sorriso pelo nascer da neta e disfrutava da “reforma” garantida pela boa fortuna do filho nos últimos anos. Noutro desenho, aparecia em busto duas vezes, numa das quais chorava ansioso e aflito, na outra mergulhava em apatia perante uma cena destroçadora e de profundo choque. Parecia num lado narrar a experiência que no outro representava ou o afectava.

          Sophie encarou com calma e segurança esta fase, dando-lhe tempo e mostrando-se segura de que tudo melhoraria. Lembrou-o de como quando nada temos para fazer, é quando menos planeamos coisas divertidas, é quando menos encontramos os convites para encontros imperdíveis e é quando menos temos vontade de usufruir do nosso tempo para explorar os livros, os filmes, a televisão que tanto ansiáramos por ver. Do mesmo modo, quanto menores são os nossos problemas, ou quando não temos quaisquer problemas dos quais nos queixar, é quando temos oportunidade para dar importância a pequenos incómodos ou a pequenas distrações que aproveitamos para trazer para o centro das nossas atenções. No fundo, quando isentos de problemas, não tardamos a criá-los. Seria a filha de ambos, Sara, quem lhe traria a paz de que precisava, por lhe trazer com o que se preocupar e o privar do muito tempo que tinha em mãos.

          No entanto, com o aproximar do nascimento de Sara, Filipe temeu que as palavras de Sophie, tantas vezes reforçadas, fossem apenas falsas esperanças. Correu com Sophie para o hospital na madrugada em que as suas águas rebentaram, mal ela se ergueu da cama para beber algo. Foi com sorrisos nos lábios que se separaram, e não se veriam nas doze horas que se seguiriam, ainda que na altura não antecipassem a duração do parto. O que Filipe não antecipava também era o tormento individual que o assomaria nesse período de tempo. A procura pelo seu pai, há tanto tempo perdido da sua vista, ainda não tivera um fim, ao contrário do que imaginara. Seria, isso sim, agora o seu início.

          Questões afloraram a mente de Filipe em catadupa, conforme deixava a esposa no hospital. Porque é que o seu pai não o visitava agora, que a sua filha ia nascer? Isto era uma mensagem, um aviso? Ao passar no corredor, viu o seu próprio reflexo no vidro duma máquina de venda de garrafas de água, chocolates e pastelaria ensacada. Sobressaltou-se. O seu cabelo desgrenhado, a roupa engelhada, a expressão de cansaço e receio, os olhos esbugalhados e os braços abandonados ao longo do corpo, tombados dos ombros descaídos. Por momentos sentiu que via o pai, mas mal a leve expressão de contentamento lhe sacudiu do rosto os anos adquiridos pelo mau aspecto generalizado, apercebeu-se que era apenas ele. E a desilusão voltou, para o inundar. Prosseguiu o seu caminho pelo hospital. Os seus olhos ansiosos contemplavam exageradamente cada face masculina que se atravessava à sua frente. Os seus pés errantes levavam-no a tropeçar nalguns desses homens, e a chocar contra qualquer pessoa que o rodeasse no seu andar frenético. No elevador, constrangeu as pessoas que o acompanhavam, ao ficar de costas para a porta, de modo a ver-lhes a cara. Procurava o pai, em vão. Não queria que lhe nascesse a filha sem o ver, sem o seu aval. A sua vida não podia fugir-lhe do controlo! Não agora! No piso térreo, a segurança já tinha recebido o relato do seu meandrar aleatório, e prestou atenção aos seus movimentos. Temiam que fosse um toxicodependente à procura duma fuga para a dor física da ressaca, ou um louco à procura de uma vítima específica que esfaquear ou estrangular. As coisas mais estranhas acontecem em hospitais, de madrugada. Filipe não foi incomodado por eles, ao seguir mecanicamente para a garagem, entrando no carro em profunda obstinação. Arrancou, inseguro. O seu olhar não atentava na condução, prosseguia a procura pelo homem, pela figura que o abandonara. Tinha prometido, - ainda há momentos, embora parecesse ter sido há horas -, a Sophie que regressaria a casa e descansaria, sossegado. Mas não podia dormir sem encontrar o vulto. Não queria sonhá-lo, queria vê-lo, correr atrás dele e agarrá-lo, interrogá-lo, fazê-lo falar, pô-lo a olhar nos olhos do filho e a identificar-se, dizer-lhe que aparecesse quando ele precisava, ou desaparecesse de vez! Travou a fundo. Um homem de gabardine escura foi forçado a bater com força, com ambas as mãos, no capot do seu carro, quando Filipe quase o atropelou. Insultou-o:

          - Palhaço do caraças! Acorda, quase que me matavas! – No entanto, não o fez recordar-se de Gritt, mas sim do seu pai. Filipe saiu de imediato do carro, não pusera o cinto de segurança:

          - Pai? – A perplexão do homem aprofundou-se e este limitou-se a andar apressado.

          Filipe regressou ao seu automóvel e arrancou, saindo finalmente da garagem do hospital. Conduziu sem destino, parando ao pé de todos os sem-abrigo que encontrava ou sabia onde estariam, procurando o homem que seria o seu pai, ou alguém que o tivesse imitado para o perturbar, para o levar à loucura. Não ia ter tempo para lidar com isto quando tivesse a bebé. Não poderia perseguir o pai, tinha ele mesmo que ser um pai, sem ter tido nos últimos anos alguém que o inspirasse. Restavam-lhe as memórias difusas dalguns encontros alucinados ou sonhados. Amanheceu. O brilho inconstante das ruas fazia-se acompanhar duma humidade que resultava ora em chuviscos, ora num nevoeiro difuso. Os vultos surgiam de cada buraco, encasacados e de guarda-chuva, a gozá-lo por nunca poder verificar se algum seria o homem do sonho, a figura da soleira da porta. Alguns vultos tropeçavam, outros avançavam devagar, mas havia ainda os que paravam, ou os que se moviam constante e definidamente. As lágrimas que lhe marcavam o rosto não se fizeram logo notar, porque se eclipsava em tristeza já há largos minutos. Quando o primeiro raio solar irrompeu entre a bruma do amanhecer lento, Filipe sentiu o coração afundar-se no peito, ao aperceber-se da passagem do tempo, e que provavelmente não veria o pai. Tentou aperceber-se de onde estava, e traçar um percurso mental até onde vira o pai pela última vez, a única em Londres. Ao chegar a casa de Gritt não se preocupou em estacionar o carro, apenas o abeirou do passeio e deteve-se, saltando em seguida do seu interior. As suas intenções esbarraram-se na porta do prédio de Gritt, fechada. Olhou lá para dentro, e nada. Não estava lá o pai. Do outro lado da rua, onde o vira, sem saber quem ele era, antes de o ver de bem perto, da última vez que se tinham cruzado, não estava ninguém. No café ao lado do edifício de Gritt, havia já alguns clientes, mas os seus vultos não correspondiam à figura do pai de Filipe. Olhou atentamente para os reflexos, nas superfícies de vidro e metal nas quais o homem poderia ocultar as suas feições. Viu então a luz da entrada do edifício onde morava o amigo Stephen acender-se. Recluiu-se no carro e observou abatido Gritt a sair do prédio, de chinelos apesar do mau tempo, e com uma toalha de volta da cabeça, apesar de vestir umas calças de bombazine bege onde enfiara a t-shirt dos Nirvana, e um casaco de cabedal negro. Nem esta visão o alegrara.

          Só por uma vez vira o pai em Londres, mesmo ali, nessa rua. Supunha que pela última vez. Pensou em regressar a Portugal, em fazê-lo de imediato, para constatar que lá o vulto lhe surgiria para o recompensar. Decidiu que seria idiotice ficar nas ruas de Londres à procura do pai. Conforme a manhã avançasse, muitas mais pessoas percorreriam as ruas e não lhe adiantava procurar entre elas um produto da sua imaginação. Chegado a casa, sentou-se à mesa da sala, virado para a janela, a tentar tirar da mente o homem que o perseguia por não o visitar, sem sucesso. Depois lembrou-se da filha, e da esposa e, finalmente, do telemóvel. As ideias loucas de se evadir do país abandonaram-lhe a mente quando constatou ter duas chamadas não atendidas, no aparelho deixado junto com as chaves do apartamento, na entrada. Eram do hospital, dos últimos minutos. Devolveu a chamada. Identificou a esposa à senhora que atendeu o telefone, no hospital:

          - Sophie Castro, está na obstectrícia em trabalho de parto. Está tudo bem com ela? Sou Filipe Carvalho, o marido.

          - Pode vir, papá! A menina finalmente está cá fora.

          Depois de ver Sophie, que inicialmente parecia dormir, mas acordou prontamente para cumprimentar o marido, Filipe deixou-a descansar mais um pouco e foi espreitar a filha, Sara. Num berço ao lado da mãe, sossegada depois de ter mamado pela primeira vez, a bebé repousava também. Filipe pegou nela ao colo e deixou que todo o calor do afecto que tinha por aquele bebé o embebesse profundamente, lavando as memórias da manhã. No que parecia um esforço, a minúscula criança abriu as pálpebras e pareceu fixar os olhos em Filipe, o seu pai, antes de as cerrar. Esse gesto trouxe finalmente paz interior a Filipe. Ele julgou ter visto na filha uma faúlha de conhecimento, de sabedoria que ultrapassava os seus minutos de vida largamente. Sentiu, então, que talvez o pai o deixasse para ajudar agora a filha, ou para se devolver ao mundo, a ele e à sua mãe, através dela, deixando-lhe o seu espaço, um vazio que ela preencheria.



***



          Não mais Filipe pensaria no pai. Entre as mudanças de fralda; levantar-se a meio da madrugada para cuidar da menina Sara, a linda filha; o seu trabalho, cada vez mais exigente, com exposições por toda a Europa; e o amor de Sophie, Filipe não tinha tempo para devaneios como o da última manhã de acre liberdade. Agora estava deliciosamente preso à condição de pai.

          O seu cada vez maior sucesso já tinha visto tornar-se o seu trabalho no alvo de um livro pela editora onde trabalhara, e onde Sophie ainda trabalhava então. O seu talento saía agora das salas de exposição, para se expressar também nas áreas do design e do marketing, transportando o nome de Filipe Carvalho para o conhecimento das massas, alguma fama merecida. Conseguia gerir os momentos da sua vida de modo a conservar a prioridade à família, mas não tinha tempo para si, para a nostalgia ou para se perder em pensamentos ociosos. No trabalho concentrava-se ao máximo, para se poder entregar à família o quanto antes. Junto destas últimas, fosse em Londres, de férias em qualquer lugar, ou em Portugal para visitar a mãe, Filipe dedicava-se a elas, incansavelmente. O homem misterioso não podia estar mais longe do pensamento, e Filipe estava demasiado cansado para sonhar com fosse o que fosse.

          E o tempo voou. A filha cedo se tornou uma senhorinha, uma menina de onze anos, com os seus gostos e as suas actividades, muito apegada ao pai. Entre as provas públicas de piano e as aulas de karaté e de português, num abrir e fechar de olhos cresceu. Num abrir e fechar de olhos, estava a terminar o ensino básico. Num abrir e fechar de olhos tinha um namoradinho. Num abrir e fechar de olhos tinha planos de vida para traçar, tinha escolhas para fazer. Num abrir e fechar de olhos, sem que Filipe o esperasse, algo o emudeceu: ao despir-se para tomar um banho, viu o seu pai reflectido no canto do espelho da casa de banho, de olhos húmidos de dor, numa expressão de espanto que lhe congelava o rosto, de boca entreaberta e olhar fixo. Filipe escolheu ignorar aquilo. Já tinham passado tantos anos desde a sua última alucinação que optou por fingir que não lhe tinha acontecido tal coisa.

          Não tardou a repetir-se. Dois dias depois, veio novamente. O pai, triste e absorto, olhava fixamente na direcção da sua banheira, enquanto Filipe se despia. Entrou num rompante no banho e fechou de imediato a cortina. Porém, desta vez não se esqueceu daquela cara no espelho com a mesma facilidade, e soube que o veria de novo.

          O aparecimento do pai estava normalmente associado a mudanças e decisões positivas na sua vida, não havia nada a temer. A sua expressão, no entanto, intimidava-o. Parecia julgá-lo, da forma como fizera ao olhar, na entrada do prédio de Stephen Gritt, para a imitação do desenho do artista de rua desconhecido, havia já mais de vinte anos. Quando voltou a vê-lo, de volta ao espelho da casa de banho, decidiu não se esconder dele, não o evitar. A sua escolha incidiu em acolher o seu conselho, ao invés de se zangar com a sua ausência, com a sua permissão que Filipe o esquecesse, para poder usufruir dele. Muito triste, de lágrimas a correr-lhe o rosto turvo e contorcido, o homem do espelho fitava-o, de cabeça inclinada. Filipe apercebeu-se, ao mexer-se, que o olhar da figura seguia o seu movimento, mas não o olhava na cara. Tentou perceber onde incidia, no seu corpo nu, a atenção do homem. Sob a nádega esquerda, na sua coxa, estava um sinal bastante grande e feio. Não parecia um sinal, parecia uma mancha. Uma mancha, desde logo, mal distribuída, de margens pouco específicas. Temeu imediatamente que fosse perigosa, e quando voltou a olhar o espelho, o vulto já lá não estava e deixara-o a sós com a sua marca ameaçadora.



***



          Seguiram-se duas batalhas. O melanoma compunha a mais séria e difícil. A sua penetração nas camadas profundas da pele exigiu tratamento agressivo, quimioterapia, para além da remoção daquele sinal que tanto entristecera o pai de Filipe no seu espelho, primeiro, e toda a sua família depois. A batalha seguinte tinha como inimigo a adolescência rebelde da filha, que fora empolada pela presença cancerígena no seu lar. Filipe e Sophie agradeceram a escolha tomada de terem apenas uma filha, por só lidarem uma vez com este tipo de comportamento, mas perguntaram-se sobejamente se, ao terem mais filhos, o não teriam evitado.

          O tom arrogante no tratamento com os pais foi apenas o primeiro passo. A exigência das saídas nocturnas precoces não tinha proibição para Sara, que arranjava maneira de fugir, se os pais não a autorizassem a sair. O abuso de álcool era evidente quando chegava de madrugada a casa, e o uso de drogas era um temor que os pais não conseguiam evitar. Em casa, ora estava encerrada no quarto a ouvir música techno, ora chorava, incapaz de comunicar com os pais, com quem apenas discutia, acusando-os da sua má fortuna e de se terem certamente comportado na sua juventude bem pior do que ela agora.

          Sara era uma excelente miúda, e antes desta fase tinha brilhantes avaliações na escola. Porém, a entrada na adolescência, as influências de alguns colegas com pais negligentes, e o cancro do pai levaram-na a deixar de ser a menina comunicativa, atenta, perspicaz e simpática que tinha como único defeito pedir muitos livros e bilhetes para concertos de bandas pop aos pais.

          Filipe teve como principal mudança relacionada com o seu melanoma o evitar dos espelhos. Nunca se olhava num espelho, e procurava que os seus olhos não pesquisassem algo por eles reflectido. O trauma de ver a face do seu pai, miserável e pesarosa, a indicar-lhe a presença dum sinal tão desenvolvido que ele devia há muito ter notado, fê-lo odiar espelhos. Talvez assim evitasse odiar-se a si mesmo, pela falta de cuidado que tinha consigo próprio, ao pensar apenas em trabalho e na família. Talvez assim evitasse odiar-se a si mesmo, pelo tratamento contrário que era quase forçado a dar à sua filha, a quem antes dava tanta atenção positiva, e agora a pouca atenção que dava era espelhada, revertida, negativa.

          Os espelhos invertem a realidade, e a sua agora estava já invertida. Não queria correr o risco de vislumbrá-la na ordem correcta por virtude dum espelho, e ser forçado a lembrar-se, constantemente, da sua miséria.

          Sophie mantinha-se confiante, igual a si própria, tendo tido na vida como única excepção a fase na qual conseguiu o emprego na State of Matter e se sentia insegura, de passo incerto, prestes a perder o que conquistara. Desde então, com a companhia de Filipe e, mais tarde, da filha de ambos, confiava. Confiava na filha, e esperava que ela não a desiludisse para além do comportamento errático. Confiava no regresso da saúde do marido, que surgiria no final do tormento inicial da cirurgia e da quimioterapia. Confiava que no futuro se ririam de tudo isso. Na vida, a cada momento difícil que passamos, que nos obriga a muito lutar ou a subsistir perante enormes dificuldades, devemos lembrar-nos que, um dia mais tarde, todos aqueles momentos serão motivo de chacota, nos causarão riso por termos duvidado que tudo de resolveria e só acabaríamos mais fortes. Portanto, confiava.

          Uma noite, Filipe pediu para que se juntassem a conversar um pouco, no final do jantar. Já tinham arrumado toda a loiça, que estava agora a lavar na máquina. Filipe estivera todo o dia a trabalhar, e estava cansado. Nesta noite já dois meses se tinham passado desde o último tratamento de quimioterapia, ele tinha já regressado em definitivo às suas funções. Sorria, em paz, quando disse:

          - Estive hoje no médico. Os resultados dos meus exames posteriores ao tratamento chegaram, e ele partilhou-os comigo. – A pausa que se seguiu, pesada e escura, denotava a continuidade do discurso. - Tenho metástases no cérebro, e é impossível operar. Ele disse-me que contasse apenas com entre três e seis meses de vida. Lamento, meus amores.

          Ambas se retiveram em silêncio. Sara iniciou um choro soluçado que a fez levantar-se, sair da sala de jantar e, passado um minuto no qual provavelmente se dirigira ao quarto para se agasalhar, saiu também do apartamento. Sophie, por seu lado, ficou profundamente abalada, mas o estilhaçar da sua crença no futuro melhor, que sempre a salvaguardara de sofrer tudo o que vivia, impediu-a de chorar. Sentia-se implodir. Sentia que a cabeça, cujos pensamentos aceleravam sem retorno, nunca pararia de recalcular a trajectória da sua vida, até ao momento em que se desintegrasse em pedaços tão diminutos como os do seu coração, que agora se enfiavam nos mais recônditos recantos do seu organismo encolhido pela dor.

          A mão de Filipe logo repousou sobre o regaço da esposa, enquanto o outro braço envolvia a parte superior das suas costas, e os seus lábios doentes lhe beijavam a face seca. Quem estava de temperatura diminuída, de momento, em antecipação da morte, não era Filipe, mas sim Sophie. Quando finalmente chorou, aqueceu. Contrariamente a todas as suas expectativas, a cabeça soube parar e o seu coração soube remendar-se, apenas para poder voltar a destruir-se nos meses vindouros. Assim é a vida, feita de Fénixes, feita de cinzas.

          Filipe, por seu lado, aceitou bem o seu destino, talvez por não ter espelhos que o confrontassem. A aparição da figura fora aviso suficiente para o que desse e viesse e, pela primeira vez, não tinha saudades do pai, apesar de mais de um ano de distância dos espelhos. Ia em breve juntar-se-lhe. Teria, isso sim, que visitar a mãe, a agora envelhecida Andreia.

          Ainda assim, não foi essa a visita que mereceu o seu maior anseio. Filipe tinha uma dúvida que apenas uma outra pessoa, bem viva e bem presente nesta Terra, lhe poderia responder: o neurologista que lhe foi designado para acompanhar os seus últimos dias.

          - Doutor, desde miúdo, depois da morte do meu pai, que eu algumas vezes vi um homem que nunca me falou, mas apareceu em momentos de grande dúvida na minha vida, ou para me avisar deste cancro, por exemplo. – Nas últimas semanas, era frequente que Filipe desse por si a conversar com pessoas que não estavam com ele, a ouvir vozes sem corpo, a ver figuras em sua casa que, mesmo sobressaltando-o, não existiam. Tudo isso se devia à evolução da presença maligna na sua massa encefálica e aos seus efeitos neurológicos. - Diga-me uma coisa: é possível que este cancro tenha tido origem no cérebro, e não no melanoma? É possível que esses eventos fossem já alucinações como as que tenho vindo a sentir?

          O médico ficou um pouco desconfortável, por se aperceber que Filipe valorizara as visitas do homem, e o via como um pai. Custou-lhe por tanto, dizer:

          - Não. Essas alucinações, ou seja lá o que forem, não estão de modo algum ligadas com os tumores que agora tem no cérebro. Esses foram, sem dúvida, resultantes do melanoma que teve. Se quer o meu conselho, não pense mais nessas alucinações, nem se preocupe em demasia com as que tem agora. Sobretudo, não deixe que lhe estraguem os seus dias, porque já não os tem de sobra.

          Filipe agradeceu as sábias, apesar de previsíveis, palavras deste senhor que via pela última vez.

          Entretanto, veio a perder o uso dos membros inferiores e quis manter-se em casa até ao momento derradeiro. Numa noite, depois de Sophie se despedir dele no quarto de hóspedes onde ele ficava só, por sua escolha e de modo a não incomodar a sua mulher; depois da agora mais calma e recatada filha Sara chegar cedo a casa e lhe fazer uma curta e simpática visita, Filipe fechou os olhos.

          O sonho que teve foi inesperado e dúbio. Um longo corredor imerso em profunda escuridão era-lhe visível, com contornos definidos, apesar da bruma. Ao fundo, um espelho. Evitara-os tanto que não sabia o que esperar do seu reflexo. Esperava, isso sim, ver de novo o seu pai. Conforme se aproximou do espelho de facto viu-o. Estava tal e qual como na primeira vez que o vira depois da sua morte. A sua expressão vaga, despreocupada, de quem sabe tudo mas não está convencido de nada e se apronta para aprender tudo ainda.

          Ao chegar ao espelho, vê que a moldura que o envolve é antes a soleira duma porta. Ao voltar a fixar o pai, ele olha-o enternecido, curioso, mas calado. Estende uma mão para afagar a face ao pai, há tanto tempo perdido. Sabe imediatamente tratar-se aquilo, definitivamente, de um reflexo seu. É ele o homem de quem se aproximava, que o fazia lembrar seu pai. A um contacto da sua mão, sabe simultaneamente tratar-se aquele espelho duma superfície que consegue ultrapassar, sem presença material que dê oposição à sua passagem. Algo lhe atrai a curiosidade, do outro lado. Dá um passo.

          Ao entrar no quarto escuro, deixa de ser Filipe Carvalho e assume a identidade duma intenção. Num banho morno de um líquido que escorre lentamente por dentro de si, todas as suas memórias são lavadas, e toda uma nova paz o assoma, prazerosamente. Estranha esta sensação, e não sabe quem é, o que é. Lembra-se muito vagamente de duas figuras femininas e uma masculina, esta de contornos incertos, que se despedem à distância, mas mal desprende a sua concentração destas presenças já as não recorda. Agora vê, independentemente da escuridão quase total, interrompida apenas por um fio de luz proveniente duma televisão distante, um menino que chora numa cama. Sabe automaticamente ser aquele quem deve agora proteger e amar. É isso quem é. É isso o que é. Sente um ímpeto de o perscrutar melhor, e debruça-se sobre ele. A sua solidão e a sua miséria incomodam-no, mas não o afectam, por saber que está ao seu alcance ajudar. Apesar da expressão de assombro e surpresa ao vê-lo, o rapaz não se mexe. Abeira-se do rapaz e, com movimentos lentos e calculados, afaga-lhe ao de leve a gentil face. De seguida, percorre com a mão uma madeixa de cabelo negra, invisível naquela escuridão quase total. Sabe de imediato, que o menino adormeceu. Sabe ser ele Filipe Carvalho, um inocente órfão de pai que vive momentos conturbados e merece a felicidade. Sabe também que caberá a ele, muito esporadicamente, fazê-lo reflectir sobre a melhor opção, a melhor saída do seu sofrimento, sem impor a sua vontade. Sabe ainda que esta foi a última vez que tocou no rapaz e que, um dia, terá de chorar a sua morte e festejar o seu reencontro para além da vida. Afinal, ele é já como um filho para si.


FIM


Miguel Marado

Braga, 15 de Setembro de 2013

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